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A literatura de testemunho

Amaury Silva escreve sobre a literatura de testemunho, onde o narrador-autor é um partícipe ou autor que não se dissocia dos fatos e dos reflexos desses acontecimentos
Prisioneiros em Auschwitz, o campo de concentração nazista onde a violência imperava. Foto: Reprodução da Internet
domingo, 21 julho, 2024

POR AMAURY SILVA

Quando Primo Levi esclareceu e justificou sobre a dificuldade de compreensão da descrição escrita sobre as horrendas experiências nos campos de concentração dos nazistas, em virtude de uma recepção deturpada ou mal digerida na circulação que sai do emissor ao receptor, o fundamento era o predomínio da imagem em foto ou vídeo, conduzida e reconduzida. Sinais claros e insofismáveis da sociedade em vias de midiatização, com o aparato tecnológico e construções audiovisuais, meio que sufocando ou subministrando a forma escrita.

Talvez, o engenho das adaptações para a dramaturgia do teatro ou as telas dos cinemas, e, principalmente, agora podcasts e vídeos em inúmeras plataformas pudesse ser um meio de redenção e paridade, para dar apoio ao autor italiano. A dificuldade para a assimilação da escrita não era isolada ou única razão para a dificuldade que Levi tinha como compreensão. Ele se referia a um obstáculo maior, pois a transmissão das ideias pelas palavras não encontrava transparência e clareza para retratar ou narrar a barbárie humana, que tentou trazer à superfície e que acabou conseguindo.

Esse é um dos mais profundos lamentos sobre a humanidade. Não haver no dicionário ou na gramática, maneira de reproduzir ao menos por aproximação, a violência e a capacidade ignóbil do ser humano. Primo Levi se refere às atrocidades em Auschwitz, onde foi prisioneiro. O autor que estudou Química em formação inicial, inclusive reconhecido pela publicação de um livro sobre a Tabela Periódica referente aos elementos químicos, aderiu a um movimento de resistência à ocupação alemã na Itália no período da Segunda Guerra Mundial (1943). O grupo era conhecido como partisans, oficialmente Movimento Justiça e Liberdade.  Desprovidos de qualquer preparo ou estratégica bélica militar, Primo Levi foi preso com seus companheiros pelos fascistas. Como era judeu foi enviado primeiramente para um campo em Fossoli.

No mês de fevereiro de 1944, aqueles prisioneiros foram conduzidos até  Auschwitz e Levi permaneceu por longos 11 meses na conhecida sucursal do inferno, o campo da morte,  vindo a ser liberado pelos russos do Exército Vermelho. De um total de 1.000 pessoas de origem judia italiana, enviadas àquele campo, apenas 20 sobreviveram. Levi era uma delas. Com a libertação cuidou de buscar na literatura, o espaço segundo ele não para contribuir com os aportes historiográficos úteis à compreensão do nazismo, mas para uma abertura de olhares e entendimento sobre a natureza humana.

Formou-se o acondicionamento da literatura de testemunho. A experiência vivida e que passa a ser retratada, encontrando os entraves naturais da linguagem, como registrado por Levi. O narrador-autor é um partícipe ou autor que não se dissocia dos fatos e dos reflexos desses acontecimentos. Põe à prova, a necessidade de validação, que já com uma espécie de alteração, não proposital, mas condicional dos relatos. Se o autor é a própria testemunha, já perdeu as credenciais da imparcialidade e da isenção? Quais seriam esses limites e será que eles estariam de acordo com uma posição de neutralidade? Esses questionamentos envolvem o estilo literário, sem que por si só funcione como crítica à sua adesão, mas apenas a percepção de determinadas características do modelo.

A palavra testemunha ao se originar no latim de ‘lembrar’, ‘ter em mente’, ‘teste’, guarda a mesma reticência na atualidade, quando submetida ao crivo de seu alcance à veracidade, pelas neurociências e até as dúvidas a respeito da higidez do livro arbítrio. Não ousamos, sequer ampliar a duvidosa sinonímia de ‘testemunha’ com ‘testículo’, missão mais cabível à filologia e à história. De qualquer maneira, quando menos, o testemunho traz em si, se não todo o fato, uma versão dele, que também é parte daquele todo.

No caso de Primo Levi, essas partes formam um conjunto dolorosamente sólido. Comovente e conscientizador para a notícia completa (gerações presentes e futuras, sem excluir a geração passada) de que a humanidade depois da aquisição de valores emancipatórios na civilização, caiu em flexibilidade naquele período de podridão.

No livro É isto um homem? - Tradução de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, a literatura de testemunho em Primo Levi permite um desembaraço de todas as angustiantes justificativas e premissas teóricas para o Holocausto. Faz um bloqueio ou interrupção quanto as perspectivas históricas ou filosóficas, das ciências políticas e sociais ou da antropologia. A linha que perpassa a descrição não é o sentido da vingança ou da exigência da retratação. Por inteiro, o livro é um manual que faz a montagem do auge da desumanização por humanos contra humanos.

A produção de Levi não se resume a esse livro. É vasta e variada, congrega uma continuidade reflexiva sobre o período de vigência oficial do nazismo e fascismo. Discute sobre mundos e pessoas, sentimentos e possibilidades, linguagem e forma. A sua contribuição para o fortalecimento e a aceitação da literatura de testemunho é um dos maiores compromissos da intelectualidade com a tutela da vida humana.

Em Recordações da Casa dos Mortos, publicado em 1862, Dostoiévski ao escrever sobre seu tempo como prisioneiro na Sibéria também se reporta por meio do testemunho quanto às atrocidades da segregação.

Participar da história e contá-la é  o ingrediente diferencial da literatura com essa qualidade, distinguindo-se o texto das produções acadêmicas e científicas, embora esses campos devam sobre as obras com esse perfil, considerá-los como objeto de pesquisa, em si mesmos e sobre os fatos imediatos que relatam. Afinal de contas, se a prova possui standards, a humanidade deve ser movida até o estágio, além da dúvida razoável.

Sobre o autor:

Amaury Silva é Juiz de Direito e professor da Fadivale

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