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A hora Macabéa

Amaury Silva escreve sobre o romance psicológico A hora da estrela, de Clarice Lispector
O ator JoséDumon e Marcela Cartaxo, durante as gravações do filme "A hora da estrela". Foto: Reprodução da Internet
domingo, 28 julho, 2024

Há muitas intenções e desejos, quase perturbações para modificarmos características ou rumos de personagens de livros e histórias que colocam em destaque subjetividades de impacto, seja em qualquer tom, qualquer direção. Inúmeras construções dos autores levam a esse interesse, quase sempre conduzindo os leitores ao pensamento de uma melhor sorte no desfecho, que preparam essas personas.

Seja um tormento menor ou alívio para a dor; o reencontro com a felicidade, fluída frente a desacertos e atropelos dos afetos, ou o sucesso de um empreendimento ou ideia, até o ponto de poupar-lhes a vida, oferecendo-lhes nova oportunidade de redenção. Inquietante o leitor adquire um falso controle por essas personagens, mas daí a ser o mesmo enredo, uma diferença crucial vai existir. Trata-se da liberdade do imaginário, sem o qual a literatura ficaria a dever como elemento vinculante à reflexão, sem nenhuma condição de remir a inadimplência, pois provocaria o exaurimento credor.

Uma das personagens e protagonistas de maior desafio para a compreensão da sua função literária e das afecções que a própria escrita lida é capaz de produzir, cuida-se de Macabéa, do romance psicológico de Clarice Lispector, A Hora da Estrela, publicado originariamente em 1977, edição atualizada em 2019 pela Editora Rocco. A grande autora brasileira, nascida na Ucrânia, estabelece uma projeção autobiográfica para trazer uma espécie de jovem nordestina de vida severina para o epicentro de uma rudeza de vida urbana central no Brasil, mas que carrega em si os novos atributos da esperança e da vida realizada.

Macabéa tem 19 anos, vem de Alagoas para trabalhar como datilógrafa no Rio de Janeiro. Desprovida de recursos financeiros, de beleza, de história ou origens benfazejas ou gloriosas, é órfã e perdeu também a tia, que dela cuidou na infância e adolescência, impondo-lhe rigorismos e severidades.

Seu habitat é dividido: tem o escritório onde presta serviços de péssima qualidade, ante a sua dificuldade com as teclas da máquina de escrever (olá geração Z, elas de fato existiram), uma verdadeira cata milho (não usa todos os dedos), como retratada essa experiência de maneira esplêndida no filme homônimo (A Hora da Estrela,1985), dirigido por Suzana Amaral, interpretada Macabéa pela atriz Marcélia Cartaxo. Seu segundo espaço é o ambiente da pensão, onde mora com mais quatro moças que trabalham no comércio.

Ali, acontece sua fixação e desejo pela mudança. Não sabe como, quando ou para que, mas tem certeza de que sua existência depende de uma alteração. Às vezes quer ser igual às outras, como sua companheira de trabalho, a Glória, moderna e ousada, bem resolvida com suas impetuosas realizações, como a liberdade de corpo e alma. Por ela, também conhece o cinismo da desculpa mentirosa ao chefe e uma naturalização sem precedentes da autonomia feminina: Glória é livre sexualmente e já fez pelo menos 05 abortos.

Clarice, que se esconde de propósito o narrador Rodrigo S.M, especulo que para mitigar os efeitos de uma possível interpretação visceral da sua realidade aos destinos de Macabéa, traz uma esfera de modulação às perspectivas daquele ser débil e sem futuro, pelas marcações da Rádio Relógio Federal do Brasil, hoje sob uma identidade neopentecostal. Mas, na época eram gosta de cultura e saber, a partir do Você Sabia?Tap! Tap! Tap! E a hora certa, minuto a minuto.

Um idílio marca a trajetória de Macabéa. Encontra um passeio, o metalúrgico Olímpico de Jesus. Nordestino, oscila entre desejos de progresso e sucesso e a realidade que bruta, limita suas oportunidades como um operário. Insosso relacionamento, Olímpico não tem respostas para as questões óbvias ou profundas da simplicidade, que são lançadas por Macabéa. Suas dúvidas, incertezas e inocuidade é possível que sejam maiores.

Não há desejo entre eles, que coloque a carne trêmula, como sugere Almodóvar, lacônico e platônico, a relação é fulminada pela fidelidade a si, empregada por Olímpico que cai os braços, sempre abertos, calorosos e previsíveis de Glória, sobretudo, porque tem a missão deliberada por sua cartomante de que sua vida só iria melhorar, se tomasse o homem de uma amiga, pagando-se assim os pecados anteriores.

Desilusão frugal de Macabéa. Muitas vezes, há uma confissão emocionante do narrador Rodrigo, buscando um encaminhamento mais auspicioso para a jovem. Mas, ela não contribui e parece que não tem salvação, a sua vida ignóbil e imprestável, feita para ser dirimida, entre a tristeza, sem reservas para a felicidade.

A oportunidade de mudança é o convite, também confirmatório da missão desenhada pela cartomante à Gloria, Macabéa também deveria buscar aquele oráculo. Com dinheiro emprestado pela pérfida amiga, Maca vai para uma sessão com a Madame Carlota. Se nos recônditos pensamentos, a moça desejava ser uma estrela reconhecida, os presságios são bons: no seu destino, homem rico estrangeiro, dono de automóvel luxuoso e que vai amá-la, embora era não fosse constituída para a ferocidade dos homens.

Não há como usurpar a hora Macabéa. Se ela pertence a nós leitores, é apenas como uma sugestão pela necessidade humana de melhorar o mundo. Rodrigo e Clarice são os responsáveis pelo desfecho de Maca e nós também concorremos para o bem e para o mal, por amarmos piedosamente as Macas da vida com um desprezo asséptico e rítmico, tal qual o ruído de um ponteiro de relógio. Você sabia?

Sobre o autor:

Amaury Silva é juiz de direito e professor da Fadivale

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