As ruas ladrilhadas com pedrinhas de sal e muita neve acumulada nas laterais, junto ao meio-fio e sobre as calçadas, na noite fria de Boston, Massachusetts, USA, estava povoada de pessoas andando em várias direções, todas muito bem agasalhadas. Era uma noite gelada de quinta-feira (20/2), e alguns jovens passavam pela Boylston Street usando uma indumentária estranha para o clima: bermuda, jaqueta de moletom e tênis. Coragem deve ser o nome desses jovens.
No prédio de número 921 desta rua, que abriga a Berklee College of Music, o ambiente por detrás da vidraça estava quentinho. E uma voz quente envolvia as pessoas no pequeno auditório David Friend Recital Hall, cantando uma música cuja letra falava de um tempo em que os negros eram vítimas do ódio dos brancos, no sul dos Estados Unidos. A música era Strange Fruit ou “fruta estranha”, referência aos corpos de dois homens negros (Thomas Shipp e Abram Smith) dependurados nos galhos de uma árvore, mortos por linchamento, no dia 7 de agosto de 1930, em Marion, Indiana.
A cena foi registrada em foto emblemática do fotógrafo Lawrence Beitler, que inspirou um professor judeu chamado Abel Meeropol a escrever o poema que deu origem à essa música, gravada por Billie Holiday, a maravilhosa diva de jazz.
A voz quente que reverberava pelo auditório, era da cantora Lydia Harrel, integrante do sexteto formado por Consuelo Candelaria (piano), Ron Savage (bateria), Bobby Broom (guitarra), Bill Pierce (saxofone) e Ron Mahdi (contrabaixo).
Strange Fruit era parte do programa da noite, no concerto intitulado Native Son: Featuring Sound of Soul, ou seja, os filhos da América apresentando o som da alma, tal qual diz o salmo 108:1 nas Bíblias estadunidenses: My heart is steadfast, O God; I will sing and make music with all my soul, que no bom português significa: Meu coração está firme, ó Deus; cantarei e farei música com toda a minha alma.
O concerto era uma celebração do mês da História Negra da América. Coragem deve ser o nome de cada um desses filhos da América que estavam ali no palco.
Strange Fruit é uma música urgente e necessária. Precisa ser cantada várias vezes, dezenas de vezes, milhares de vezes. E por que? Quem responde é Ron Savage, baterista e bandleader do grupo, e vice-presidente da Berklee. “Nós ainda vivemos numa época em que isso é uma preocupação, sabe? Por isso, às vezes, pensamos que um jazz é antigo, mas não é, talvez ele seja profético”, disse.

O concerto foi uma celebração do mês da História Negra da América. Foto: Tim Filho Jornal da Cidade GV
Os filhos da América
O concerto, de jazz e blues, seguiu um repertório de altíssima qualidade, tocado por um time de mestres, os filhos da América, que interpretaram com alma e um sentimento bem forte a saga dos negros, contada e cantada em cada linha melódica construída pelos instrumentos do palco e seus instrumentistas, na noite daquela celebração.
Jazz e blues são os grandes legados culturais dos Estados Unidos aos povos de todo o mundo. E nasceram como obra do povo negro, sementes abençoadas do ventre da mãe África. Claro que na formação desses dois gêneros houve a influência da música europeia, é verdade, mas eles foram gestados e concebidos pelo povo negro, cujas raízes sempre estiveram fincados no solo fértil da África.
Talvez seja esse o alerta que a avó do baterista Ron Savage, fez a ele anos atrás, alerta que se iluminava com aquele concerto comemorativo ao mês da História Negra estadunidense. À época, Savage era um jovem músico a romper fronteiras.
Durante o concerto, Savage contou que na sua juventude, viajou à Europa (Paris, Madrid, Barcelona, Suécia), em turnê, e quando voltou, logo que entrou em casa, sua avó estava assistindo a um filme de terror, estrelado pelo impiedoso e sanguinário Freddy Krueger. E comia pipocas, cumprindo o ritual gastronômico dos cinéfilos. Ela olhou pra ele, assim, de lado, e perguntou por onde ele havia andado. Ele disse, orgulhoso, que havia viajado para tocar na Europa. A avó ouviu, não disse nada, e voltou suas atenções ao filme. Mas logo depois, voltou-se ao neto e disse: "você deveria ter ido à África!"
A história, que divertiu a plateia (principalmente ao guitarrista Bobby Broom), tem um significado simbólico importante: o povo negro deve (ou deveria) sempre voltar às suas origens. Esse retorno, à luz da cultura brasileira, foi denominado como Teoria do estilingue, pelo designer Aloísio Magalhães, pioneiro da Escola Superior de Design Industrial (ESDI), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Essa teoria é, na verdade, uma metáfora, que se explica de forma simbólica, no funcionamento do estilingue, aquela arma primitiva com haste em forma de Y, que tem duas tiras de borracha amarradas às pontas, e uma tira de couro presa nas extremidades das tiras. É uma arma rústica, com a qual se arremessa uma pedra. Quanto mais o atirador puxa a tira de couro para trás, a borracha se estica e possibilita que a pedra alcance maior distância.
Na vida cotidiana, segundo essa teoria, quanto mais recuamos no passado para buscar referências culturais, teremos maior e melhor entendimento do presente, e podemos alcançar as ideias que vão iluminar nossas ações futuras. Neste caso, a música Velha roupa colorida, do compositor e poeta Belchior, um brasileiro genial, lá do nordeste do Brasil, cai por terra. O verso dessa música, o passado é uma roupa que já não serve mais, e um contraponto para esta tese.
Então, se voltarmos à mãe África, à gênese do jazz e do blues, encontraremos a música negra, feita por negros, os mesmos que foram submetidos aos trabalhos forçados sob o regime dos brancos que os escravizaram, e que promoveram os linchamentos descritos no poema de Meeropol, que virou música e ganhou vida na interpretação de Billie Holiday, e que ecoou no David Friend Recital Hall, na bela voz de Lydia Harrel, quase 100 anos depois da cena macabra do Álamo sustentando corpos como frutas estranhas.
O braço de Lydia Harrel erguido, com o punho cerrado, foi um belo gesto que garantiu ao espetáculo uma estética engajada, ao som de sua voz quente e delicada, acompanhada pelo som mágico que brotava das teclas do piano de Consuelo Candelaria, nas cordas da guitarra de Bobby Broom e do contrabaixo de Ron Madhi, nas belas escalas construídas pelo saxofonista Bill Pierce, e nas baquetas de Ron Savage, que percutiram os tambores da África.
Ao fim do concerto, ficou no ar o sabor de um passado revisitado, no auditório quentinho da Boylston Street, que lá fora, ainda exibia suas pedrinhas de sal ladrilhando a via, e a neve estocada nas laterais. Deus salve a América! Deus abençoe a África!
O repertório da noite
Joyful Noise - Steve Wilson
Calvary - Negro Spiritual
Stranger Fruit - Abel Meeropol
Remembrance - Ron Savage
The Promise - Andre Crouch
What a Difference a Day Makes - Maria Greever
Fly Little Byrd - Donald Byrd
Backwater Blues - Bessie Smith
Sobre o autor:
Alpiniano Silva Filho (Tim Filho) é jornalista filiado à International Federation of Journalist (IFJ) e produtor cultural. No Brasil, fundou o Valadares Jazz Festival, evento produzido por ele desde 1999, e que já está na 25a edição.