Os ecos sem rótulos de Waly

Uma liberdade de escancarar tapumes modernistas, revolucionar o pop como se Andy Warhol não tivesse saído do jardim da infância, cristalina e frugal, como tal, mas, mais agridoce do que a bossa nova, e que se morou, não fixou única residência na tropicália. Waly Salomão foi o arauto da poesia livre como ainda não se […]
O poeta Waly Salomão, em foto reproduzida do portal do Senado Federal
domingo, 12 fevereiro, 2023

Uma liberdade de escancarar tapumes modernistas, revolucionar o pop como se Andy Warhol não tivesse saído do jardim da infância, cristalina e frugal, como tal, mas, mais agridoce do que a bossa nova, e que se morou, não fixou única residência na tropicália. Waly Salomão foi o arauto da poesia livre como ainda não se definiu conceitualmente e revelou-se como os sons de palavras faladas e escritas que diante dos obstáculos das linhas comunicantes voltaram refletidas à poesia, em tempo que não se pode mensurar.


Poeta de poemas, poeta de letras de canções, diretor, produtor, Waly foi uma mistura da diversidade síria e baiana, convertida em um inquieto caldo para a cultura e a arte brasileira. No início da década de 1970 sua parceria musical com Jards Macalé frutificou com a icônica Vapor Barato, sucesso tremendo de Gal Costa, apresentado no show Fa-Tal – Gal A Todo Vapor (1971), espetáculo dirigido por Waly que se transformou em disco.


Marcantes como ato de rebeldia e inconformismo quanto à situação política do Brasil, os versos exalam alternativas de fuga, seja aquela imposta contra a postura de enfrentamento da indesejada juventude que insistia em viver, ou vertente intimista e psicodélica. A desenvoltura do desapego hippie e a certeza da manutenção dos elos feitos ecos que vinculam prisões sentimentais inquebrantáveis com lugares e pessoas, é revelada pelo poeta: Oh, sim, eu estou tão cansado / Mas não pra dizer / Que eu não acredito mais em você / Com minhas calças vermelhas / Meu casaco de general / Cheio de anéis / Vou descendo por todas as ruas/ E vou tomar aquele velho navio / Eu não preciso de muito dinheiro / Graças a Deus / E não me importa, honey.


Às vezes nominado como agitador cultural e poeta marginal, Waly Salomão parece que fora tomado e domado pela força de catalisadores de persistências em rotas e ondas que estão para ser descobertas. Se dispunha às experiências com a poesia concreta, ao mesmo tempo que se expunha às dores líricas como um vértice de poeta preparado para a cerimônia da emoção. É o que se percebe em Mal Secreto (1971), outra dobradinha com Macalé:


Não choro / Meu segredo é que sou / Rapaz esforçado / Fico parado, calado, quieto / Não corro/ Não choro / Não converso / Massacro meu medo / Mascaro minha dor / Já sei sofrer / Não preciso de gente Que me oriente /


Se o mal secreto era a universal e infalível depressão, é uma possibilidade de análise contextual livre, cujo decreto do primeiro livro de poemas Me Segura qu'Eu Vou Dar um Troço (1972) rebela com estardalhaço. A obra traz prosa, desenhos e a concepção gráfica do amigo e artista plástico Hélio Oiticica.


Escrito durante a prisão do poeta no Carandiru, segundo o próprio, pelo porte de uma bagana de fumo, o livro é uma decisiva reunião de recortes contraculturais, confirmando a nossa introdução no universo beat – referenciais urbanos, inconformismo e liberação experimental com a escrita, sons e a formalidade comunicacional.


Da parceria musical com Caetano Veloso, Waly Salomão deixou como expressão compatível com a sua energia, inteligência e vibração poética, um dos conjuntos de versos mais fascinantes da MPB, em Mel, consagrada na voz de Maria Bethânia e que de algum modo também consagrou a cantora, como a intérprete Abelha Rainha. As palavras articuladas em uma coesão que unificam melodia e a ideia do prazer que as operárias soltam da colmeia como dádiva a ser apreendida:


Lambe olhos, torce cabelos, feiticeira vamo-nos embora/ É meio-dia, é meia-noite, faz zumzum na testa/ Na janela, na fresta da telha/ Pela escada, pela porta, pela estrada toda a fora /Anima de vida o seio da floresta/ O amor empresta a praia deserta zumbe na orelha, concha do mar/ Ó abelha, boca de mel, carmin, carnuda, vermelha/ Ó abelha rainha faz de mim um instrumento do seu prazer. Talismã e Cobra Coral podem ser lembradas também como mais duas pulsões propagadas nas ondas poéticas em busca das barreiras de sua transformação.


O rompimento entre os seres que habitavam Waly foi proclamado no poema Câmara de Ecos: Cresci sob um teto sossegado, meu sonho era um pequenino sonho meu. Na ciência dos cuidados fui treinado. Agora, entre meu ser e o ser alheio a linha de fronteira se rompeu - (Algaravias, Editora Rocco). Já no livro Babilaques – Alguns Cristais Clivados, Editora Martins Fontes, é o poema Exterior que fornece a medida da extensão poética libertária de Waly. Ele é o grande guerreiro pela liberalidade da forma e da essência: Por que a poesia tem que se confinar às paredes de dentro da vulva do poema? por que proibir à poesia estourar os limites do grelo da greta da gruta e se espraiar além da grade do sol nascido quadrado?
Não há confinamento para a poesia que Waly Salomão nos convida à partilha. Todo ele foi poesia de ecos e para sempre será reverberações, superando todos os recintos de contenções.

Amaury Silva é Juiz de Direito, professor da Faculdade de Direito Vale do Rio Doce e aficionado do universo literário.

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