De um lado trabalhadores sem emprego vivendo em penúria e sem perspectiva na região onde moram. Do outro, fazendeiros e empresários inescrupulosos que visam o lucro a todo custo, mesmo que para isso tenham que rebaixar outros seres humanos às maiores humilhações.
Quando a duas pontas se encontram, por meio de agenciadores conhecidos como “gatos”, que também lucram com o “negócio”, o resultado é o tráfico de pessoas e o trabalho análogo à escravidão.
Nos vales do Jequitinhonha e Mucuri, essa fórmula se repete há décadas e parece ainda estar longe do fim, conforme os relatos feitos nesta sexta-feira (14/3/25), na audiência pública da Comissão do Trabalho, da Previdência e da Assistência Social da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) realizada na Câmara de Vereadores de Berilo.
O município é o epicentro do problema na região, ao lado das vizinhas Minas Novas, Jenipapo de Minas, Chapada do Norte, Francisco Badaró e Virgem da Lapa. Em comum nos desabafos feitos na audiência, a avaliação é de que a pobreza aliada à falta de políticas públicas e mais investimentos na região reforçam a sedução dos “gatos”.
O objetivo da reunião foi justamente debater a vulnerabilidade desses trabalhadores, atendendo a requerimento do deputado Betão (PT), que preside a Comissão do Trabalho. A Comissão de Participação Popular foi representada pelo deputado Doutor Jean Freire (PT).
“Precisamos acabar definitivamente com essa vergonha nacional. Por isso essa pauta virou a ponta de lança da Comissão do Trabalho, daí a importância desta audiência para subsidiar novas ações. A população precisa estar atenta para diferenciar aqueles que defendem os trabalhadores e aqueles que são contra eles. O trabalho análogo a escravidão é reflexo da famosa luta de classes, na qual os que detém os meios produção vão as últimas consequências para retirar direitos dos trabalhadores e assim concentrar mais recursos nos seus bolsos”.

Oriundo do Vale do Jequitinhonha, o deputado Doutor Jean Freire também é médico e relatou já ter tido contato com essa triste realidade nos dois ramos de atuação.
“Nas minhas andanças pela região já dei carona para migrantes que estavam voltando para casa após trabalhar em lavouras até em outro estado e que sofreram humilhações. Uma mulher contou que sua tarefa era andar agachada na frente da colheitadeira retirando pedras para não atrapalhar a máquina. Falaram que a mecanização iria resolver o problema, mas ela criou outras formas de exploração”, contou.
O parlamentar também já foi procurado por “gatos” (intermediários) para realizar a avaliação médica dos trabalhadores e assim agilizar a viagem para colheita em outras regiões. “Eu sempre me neguei. Eles não se importam se o trabalhar tem Doença de Chagas, esquistossomose, o que vale é o lucro”, lamentou.
De vítima à luta contra a humilhação dos trabalhadores
Vítima três vezes do trabalho análogo a escravidão, a primeira aos 14 anos, quando nem sabia o que era isso, Jorge Ferreira dos Santos Filho fez do trauma a bandeira de luta da sua vida. Ele hoje é coordenador-geral da Articulação dos Empregados Rurais de Minas Gerais (Adere/MG) e tem coordenado a atuação da entidade com as ações da Comissão do Trabalho.
“São 22 anos de luta e ainda me espanto com o que a gente se depara. Em 2021, numa fazenda do Espírito Santo, resgatamos 72 trabalhadores, 71 deles com covid, todos de Chapada do Norte e Minas Novas. E em todas as denúncias que recebemos sempre tem gente do Jequitinhonha e Mucuri”, contou o ativista.
Segundo Jorge, não é possível sequer falar em violação de direitos porque quem promove o trabalho escravo rouba a dignidade de outros seres humanos, reduzidos a objetos.
“São criminosos que ainda não são tratados assim no Brasil. Tiram a pessoa de uma casa simples para dormir no chão, passar fome e ser humilhado. O trabalhador já sai da região devendo porque chega lá e tem que pagar até pela ferramenta”, relata.
“Essa audiência serve para todo mundo entender que isso não é normal”, acrescenta a coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos do Vale do Mucuri, Ana Patricia de Jesus Santos. “Precisamos indagar: por que as pessoas migram? É uma ausência de políticas públicas, faltam até dados dessa migração”, emenda.
“Já atuei nas cidades de Jacinto, Turmalina e Almenara. Em Turmalina, lidei com um caso de meninas que foram aliciadas para trabalhar na praia na Bahia, mas, no meio do caminho, foram obrigadas a se prostituir. Por isso vim aqui hoje, pela importância do tema. Sem denúncia não dá para saber o que está acontecendo dentro de uma fazenda”.
Bárbara Louzada - Promotora de Justiça
O Disque 100 foi lembrado pela promotora de Justiça da Comarca situada no município de Jequitinhonha, Bárbara Soares Louzada. É um serviço gratuito do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania que recebe denúncias de violações de direitos humanos 24 horas por dia, todos os dias.
Ela também alerta para a importância do trabalhador resgatado voltar a ser vítima se não for amparado por serviços como o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).
Apesar do Ministério Público Estadual não ter a competência para atuar no problema, que é da alçada federal, ela reforça que o mais importante é denunciar, seja para qual órgão for. “Passem a informação que receberam aqui adiante e não deixem de denunciar”, recomendou.

A audiência atendeu a requerimento de Betão (E), presidente Comissão do Trabalho, com a participação da Comissão de Participação Popular, representada por Doutor Jean Freire. Foto: Guilherme Bergamini ALMG
Minas lidera Lista Suja
Com base em dados da plataforma SmartLab, pelo menos 34 moradores de Berilo foram vítimas do trabalho análogo à escravidão e resgatadas entre 2023 e 2024, número que chega a 141 nos últimos 20 anos.
Entre 2023 e 2024, foram registrados nove casos em Minas Novas e outros nove em Jenipapo de Minas, 27 em Chapada do Norte, 12 em Francisco Badaró e quatro em Virgem da Lapa, todos também no Vale do Jequitinhonha.
A plataforma SmartLab reúne dados da Organização Mundial do Trabalho (OIT, em inglês) e de dois ministérios do governo federal, o do Trabalho e Emprego (MTE) e o dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Segundo lembrado por Betão na audiência em Berilo, o monitoramento desses crimes ainda é precário e piora diante da omissão do governo estadual em fazer cumprir a Lei 24.535, de 2023, originada de projeto de lei de sua autoria.
A Lei 24.535 determina que o Estado divulgue, em site oficial, a relação de pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas ou com sede ou filial no Estado que, por cometer esse crime, forem incluídas no cadastro de empregadores do MTE, a chamada Lista Suja.
Minas Gerais está no topo da última edição da Lista Suja, divulgada semestralmente em abril e outubro de cada ano. O Estado respondeu por 22% dos casos do País no último levantamento.
A lista relaciona 727 empregadores no País. Do total, 165 são de Minas. Segundo informações do Ministério Público do Trabalho (MPT) já foram abertos inquéritos contra esses empregadores.
O superintendente do Ministério do Trabalho em Minas Gerais, Carlos Calazans, defende que Minas Gerais não tem mais casos de trabalho análogo à escravidão do que estados como Bahia, Maranhão ou Amazonas, mas, sim, uma fiscalização eficiente. “Mas não é papel somente nosso, não vamos conseguir acabar com isso sozinhos, precisamos envolver todo mundo”, analisa.
Calazans aproveitou a audiência em Berilo para desmentir a fake news de que o trabalhador que assinar carteira, mesmo para dois ou três meses de trabalho, vai perder o benefício do Bolsa-Família por um ano inteiro. Ele citou cartilha do governo federal que explica portaria do MTE que garante isso.
“Vamos colher uma das maiores safras de café da história de Minas Gerais. Quem sair dessa região para trabalhar nessas lavouras tem que lembrar que vai colher ouro, o café está valendo quatro vezes mais por saca. Então não se deixem humilhar, aprendam a negociar e se valorizar”.
Carlos Calazans - Superintendente do MTE em MG
De cada dez vítimas, nove são negras
A última edição da Lista Suja também traz 6.148 pessoas resgatadas no Brasil, sendo 1.635 em Minas. Com relação ao perfil das vítimas, 90% seriam pessoas negras, 60% moradores locais e 40% imigrantes e/ou mão de obra externa.
Esse tipo de crime é mais comum na agricultura em geral, em especial cultivo e colheita de café e de cana-de-açúcar, e, ainda, carvoarias, construção civil, trabalho doméstico e indústria da fiação. As atividades de trabalho rural representam 80% dos casos detectados.
O MPT atua para pedir as indenizações trabalhistas devidas e em prol das condenações por danos morais além, claro, da prevenção deste tipo de crime, que é descrito no artigo 149 do Código Penal.
Segundo a legislação, o trabalho escravo é aquele em que o trabalhador está em situação de cerceamento de liberdade, em condições degradantes de trabalho, em jornada exaustiva ou está em situação de servidão por dívida. A pena prevista é de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Com informações do site oficial da Assembleia Legislativa de Minas Gerais