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Povos do Jequitinhonha denunciam impactos por exploração do lítio

Indígenas e quilombolas desabafam sobre mudanças em suas rotinas, e Ministério Público aponta que falta de escuta prévia às comunidades afronta a lei
Em audiência na Comissão de Meio Ambiente, moradores vindos de várias comunidades protestaram contra danos da mineração. Foto: Luiz Santana/ALMG
sexta-feira, 5 julho, 2024

"Lítio só com soberania popular". "O lítio é do povo". "Zema, tira as mãos do nosso lítio".

Com essas mensagens em cartazes trazidos à Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), comunidades e povos tradicionais do Vale do Jequitinhonha expressaram nesta sexta-feira (5/7/24) sua indignação com impactos socioambientais causados pela exploração do lítio na região, onde estão as maiores reservas desse mineral do País.

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Foto: Luiz Santana/ALMG

Em reunião na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, realizada a pedido da deputada Beatriz Cerqueira (PT) para ouvir os atingidos, lideranças indígenas, quilombolas e comunitárias denunciaram que estão sofrendo violações de direitos e que não foram consultados sobre o projeto minerário.

Consulte o resultado e assista ao vídeo completo da reunião

Foram enumeradas situações de depressão e ansiedade, sobretudo nos idosos; serviços de saúde lotados em cidades como Araçuaí com a chegada de gente de fora; problemas respiratórios causados pela poeira. Além de casas rachadas do teto ao chão pelas explosões na mina; água contaminada e desvio de estradas locais. 

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Foto: Luiz Santana/ALMG

Nídia Miranda, moradora de Poço Dantas, em Itinga, disse que sua comunidade tem sido atingida pela atividade da mineradora Sigma. Ela citou o caso da vizinha dona Custódia, idosa acamada por problemas respiratórios, que viu seu quintal varrido por enxurrada vinda de instalação da empresa e fica abalada a cada explosão.

"Essa empresa chegou tomando conta dessa terra e não se preocupa com o povo, a gente vê a empresa levando todo o tesouro da região e pisando no povo. Até uma estrada centenária da comunidade foi desviada." Moradora de Poço Dantas - Nídia Miranda

Segundo ela, moradores passavam a pé pela via, para atividades como ir ao médico, mas o trecho foi desviado em mais de três quilômetros. Nídia Miranda ainda revelou sua tristeza por não poder mais levar a neta para sua casa, por ser a criança alérgica e ter asma, condições, segundo ela, agravadas pela poeira da mineração.

José Claudinei Soares, vice-presidente da comunidade quilombola de Jirau, frisou que a maioria dos moradores de sua comunidade contrariou o que seria desejo da empresa e não quis deixar suas casas, permanecendo na resitência, assim como ele.

"Onde moro não aceito que entrem. A meu ver, houve um mal planejamento, o impacto da mineração começa na zona rural, vai para a área urbana e a gente não sabe onde vai parar."

José Claudinei Soares - Vice-presidente da comunidade quilombola de Jirau

Segundo ele, a mineração estaria desocupando roças da região, refletindo no aumento dos alugueis nas cidades. 

Liderança indígena da Aldeia Cinta Vermelha, Cleonice Maria da Silva fez coro às denúncias, contando que sua aldeia está à margem do Rio Jequitinhonha. Segundo ela, pessoas da empresa falam que sua comunidade não será afetada, mas ela discorda.

Entre outros, o lítio é muito utilizado para a fabricação de baterias de veículos elétricos.

"Maldita transição energética essa, que não é para beneficiar a mãe terra. Temos gente lá (na região) da China, do Canadá, da Aústria, estamos sofrendo uma nova invasão, como a de 1500", disse ela.

O desafabo de Márcia Pereira Dias, presidenta do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Araçuaí, foi no sentido de haver dois pesos e duas medidas para a questão.

"A mineradora pode chegar e invadir, estão derrubando cercas, para uma escavação da forma deles. Mas o produtor não pode roçar, que é multado", comparou.

MPF aponta possível nulidade de projeto do lítio

O procurador da República em Minas, Helder Magno da Silva, afirmou que há no Ministério Público Federal um inquérito civil público correndo para apurar possíveis violações de direitos étnicos, raciais e territoriais dos povos tradicionais da região, em decorrência da mineração do lítio. 

Ele frisou que a ausência de consulta a povos tradicionais pelo Estado, quando este faz o licenciamento ambiental, e pela Agência Nacional de Mineração (ANM), quando esta dá o direito de pesquisa e lavra, descumpre a Convenção 169 da ONU, a Organização das Nações Unidas.

A mencionada convenção tem força constitucional no Brasil, frisou ele, e determina que os povos tradicionais deverão ter o direito a escolher suas prioridades em seu processo de desenvolvimento.

E deverão participar da formulação e da avaliação dos planos que possam afetá-los.

"No entender do Ministério Público Federal, se isso não foi observado implica na nulidade de tudo o que foi formulado e deferido pela ANM e pelos órgãos ambientais", frisou. 

Por sua vez, o analista ambiental Lucas Grisólia, do Departamento de Gestão Socioambiental de Povos e Comunidades Tradicionais do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, manifestou solidariedade aos depoimentos dos moradores do Vale do Jequitinhonha.

Ele se dispôs a encaminhar internamente as denúncias e também a sugestão da deputada Beatriz Cerqueira para que seu departamento participe de uma visita técnica à região a ser proposta por ela.

Interesse pelo lítio do Jequitinhonha e Mucuri cresceu 500% 

Processos minerários de lítio nas Bacias do Rio Jequitinhonha e do Rio Mucuri, referentes a áreas em Minas, cresceram 562% de 2022 até fevereiro deste ano, junto à Agência Nacional de Mineração, equivalendo a 1.377 processos minerários de lítio até o segundo mês de 2024.

Dados como esses foram apresentados pela professora Aline Sulzbacher, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, segundo a qual 14 municípos mineiros já estão regionalizados como vale do lítio.

"Temos territórios sendo pesquisados para o lítio sem processo de consulta aos povos."

Aline Sulzbacher -Pesquisadora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri

A professora ainda alertou que o Estado ainda tem pela frente muitos desafios para fiscalizar o segmento. Isto porque, de 176 requerentes à ANM analisados pelo observatório, grande parte seriam pedidos de pessoas físicas, dificultando o controle da exploração do lítio.

Por fim, a pesquisadora defendeu três pontos, segundo ela importantes no trato com a mineração em Minas: maior investimento público em pesquisa relacionada a efeitos da mineração em territórios e na natureza; avanço no modelo minerário, para partilha da riqueza com envolvimento e participação das comunidades afetadas; e mapeamento de povos e comunidades tradicionais, com celeridade no seu reconhecimento e registro dos territórios.

A deputada Beatriz Cerqueira frisou ter estado na região entre abril e maio deste ano e que pôde ver de perto os impactos relatados. Ela também criticou a tentativa de silenciamento que estaria havendo contra os que estão denunciando a situação do Vale.

Nesse sentido, a deputada registrou que a mineradora não participou da audiência desta sexta (5), porque o objetivo desta vez era dar voz aos moradores, para então ouvir a empresa numa outra reunião.

Com informações do site oficial da Assembleia Legislativa de Minas Gerais

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