Se alguma dúvida existe de que Luiz Melodia não deixou que sua arte sucumbisse aos parâmetros preparados pela indústria fonográfica com sua inflexível construção de mercados, a visionária homenagem do amigo e maldito maior Sérgio Sampaio espanta e espanca qualquer incerteza.
Melodia foi o projetor de melhores dias, não permitindo uma demarcação territorial de seu canto e sua composição apenas para o samba hermético como muitos decretavam; encheu de samba-canção o seu blues de brasileiro. Na letra da canção Doce Melodia, Sérgio queria que o amigo tocasse mais e mais, e o público passou a querer também e para sempre o rebelde e passional do Morro do Estácio deu um banho no futuro.
Cantor, compositor, poeta e algumas investidas como ator, Luiz Melodia, que preferia ser Luiz, condenava o Melôdia, mas admitia o Melódia, como sugestão do parceiro violonista Renato Piau, será uma eterna presença de grande requinte na MPB, que se presta a ser naturalmente original, mas conversa com os mundos transversais.
Quando descoberto por Torquato Neto, Waly Salomão ou Hélio Oiticica, ou cumulativa ou sucessivamente confirmando-se seu talento por essa pleiade, o autor de Pérola Negra mostrada para a glória nacional na tocante interpretação de Gal Costa, adquiriu todas as credenciais para ser espontâneo como supunha-se improvável.
E se a carreira de Melodia, não fosse sua genial autenticidade iconoclasta, tivesse alcançado uma notoriedade de maior expansão popular, talvez grandes registros de seus desempenhos estivessem naturalizados na mesmice. Mas, se marca registrada é uma patente de independência que se credencia pela potência da arte, Luiz Melodia é um arauto da melhor qualificação. Uma boa mostra da sua sofisticada expressão, validando a transcendência entre o compositor e o intérprete da própria obra é o compartilhamento em dueto com elas.
No álbum Ao Vivo Convida (2002) Elza Soares, cuja voz é estudada pela academia na área da fonoaudiologia, oferta uma condução rítmica à canção Fadas que ganha em beleza e harmonia, como uma afecção que esperava pelo crescimento na partilha fonética entre Elza e Luiz. Devo de ir, fadas / Inseto voa, cego sem direção/ Eu bem te vi, ai nada / Ou fada borboleta / Ou fada canção / As ilusões fartas/ A fada com varinha / Virei condão / Rabo de pipa / Olho de vidro / Pra suportar uma costela de Adão.
Em 1978, Zezé Motta lançou o álbum Dores de Amores com três composições de Luiz Melodia (a que dá nome ao disco, Magrelinha e O Morro Não Engana), desencadeando uma das duplas mais afinadas e completas da MPB, que desfilou pelo Projeto Pixinguinha, lamentavelmente extinto – fomentava apresentações artísticas populares com ingressos a preços mais acessíveis por todo o Brasil. O dueto com Zezé em Dores de Amores é uma celestial concentração de notas na estrita necessidade da companhia que beira à perfeição entre melodia e versos, o que costuma ser denominado de obra-prima.
Mais à frente, a presença feminina na performance de Melodia é marcada pela estrondosa releitura vocal de Cássia Eller para a consagrada Juventude Transviada, e os duetos com outras compositoras, como Ângela Ro Ro (Tola foi você) e Ana Carolina (Cabide).
O cantor Luiz Melodia faz uma espécie de abdução leve e pacífica ao interpretar essas pérolas em companhia e parceria das próprias cantoras compositoras. E toma para si em uma leitura insuperável, como se sua sempre fora a canção, um dos diamantes de Cazuza, que não escondia ser fã de Melodia: se o letrista de animação na escrita dos créditos se esquecesse depois que Melodia cantasse Codinome Beija-Flor, de titular a autoria para Cazuza, Reinaldo Arias e Ezequiel Neves, seria mais um cômputo para o seu vasto e belo acervo autoral.
Melodia não limitou sua arte à música e emprestou sua elegância ao cinema, não como um mero atrevimento ou um desafio de perfil; teve atuações consistentes em dois longas, a primeira experiência em Quase dois irmãos (2004, Direção Lúcia Murat) e Casa de Areia (2005, Direção Andrucha Waddington). Falecido em 2017, a caminhada do artista é apresentada na biografia, Meu Nome é Ébano – A vida e a obra de Luiz Melodia, escrita por Toninho Vaz e publicada pela Editora Tordesilhas em 2020.
Outra opção para se conhecer mais sobre Melodia e sua arte, é sintonizar o canal Curta e apreciar a exibição do documentário Todas as Melodias, (2020, Marco Abujamra).
Conectando relatos a fatos sobre a carreira e a vida pessoal, o livro e o documentário são oportunas contribuições para se saber mais a respeito de quem talvez tenha sido o novo peregrino sábio dos enganos, ou sabia de quem se tratava tal figura.