por Jamir Calili
Há figuras cuja trajetória se impõe com a força tranquila de quem não precisou gritar para ser ouvido, especialmente em tempos em que fazer barulho é meio mais eficaz de propagar uma mensagem. Divaldo Pereira Franco, o médium baiano nascido em 1927, é uma dessas raridades. Seu nome é respeitado dentro e fora do movimento espírita, não apenas pela mediunidade prolífica, mas pela profunda coerência entre palavra e ação. Neste momento em que sua biografia se transforma em memória coletiva, é essencial reconhecer — independentemente de crença ou filiação religiosa — a grandeza do seu legado.
Não se trata de um santo nem de um ídolo, mas de um homem que escolheu o amor como centro de gravidade de sua existência. Inclusive, destaca-se que enquanto homem expressou opiniões polêmicas. De origem humilde, órfão de pai desde os seis anos, Divaldo conheceu cedo as agruras da vida. Sua jornada mediúnica foi marcada pela orientação de sua mentora espiritual, Joanna de Ângelis — um espírito que, segundo ele, lhe ditaria centenas de mensagens com profundo teor psicológico e moral. Foi uma das parcerias espirituais mais longevas da história do espiritismo.
Ao longo de sua vida, psicografou mais de 270 livros, muitos deles traduzidos para mais de 15 idiomas e distribuídos em dezenas de países. Estima-se que seus livros venderam mais de 10 milhões de exemplares — números raros mesmo entre best-sellers da literatura convencional. Ainda que não se acredite no espiritismo, sua contribuição literária para o mundo é fora do comum. Mas Divaldo nunca ficou com os lucros das obras: todo o dinheiro sempre foi revertido para sua obra social, a Mansão do Caminho, em Salvador.
E aqui é preciso fazer uma pausa. Porque, se por um lado o volume de sua produção literária é impressionante, é no campo da ação social que seu trabalho alcança um patamar ainda mais comovente. Fundada em 1952, ao lado de Nilson de Souza Pereira, a Mansão do Caminho é muito mais que um abrigo ou escola: é um complexo educacional e assistencial que já acolheu e educou mais de 160 mil crianças e jovens em situação de vulnerabilidade. Com creches, escolas, atendimento médico e programas de profissionalização, trata-se de uma experiência de caridade estruturada e eficaz, movida por um profundo senso de justiça social. Uma verdadeira usina de esperança.
Divaldo falava com mansidão, mas enfrentava com coragem os desafios de seu tempo. Tornou-se, a partir da década de 1970, um embaixador da paz, sendo convidado para conferências internacionais, como nas Nações Unidas e na Organização Mundial da Saúde, tratando de temas como espiritualidade, ética, ecologia e direitos humanos. Em 2014, foi chamado ao Vaticano por ninguém menos que o Papa Francisco, para um encontro inter-religioso sobre a paz mundial. Naquela ocasião, Divaldo representou o espiritismo entre líderes budistas, muçulmanos, judeus e cristãos — uma síntese de sua vida: diálogo sem
sectarismo, espiritualidade sem fanatismo.
Sua postura conciliadora e humanista fez com que fosse reconhecido por diversas personalidades públicas, tendo sua vida registrada no filme O Mensageiro da Paz. Tinha uma relação próxima com Chico Xavier, embora não possa ser considerado seu substituto, uma vez que o espiritismo prescinde de estruturas hierárquicas e de qualquer tipo de submissão entre seus líderes ou representantes mais destacados. Sua partida foi sentida por diversas lideranças. Entre os religiosos, Divaldo sempre foi respeitado, sendo muitas vezes chamado a eventos ecumênicos e admirado.
Divaldo percorreu o país de ponta a ponta, levando palestras, consolo e reflexão. Esteve por diversas vezes em Governador Valadares, onde mantinha laços com o movimento espírita local. Suas palestras atraiam centenas de pessoas, sempre abordando temas universais: perdão, reencarnação, dor, morte, amor.
Divaldo costumava dizer: “A paz no mundo começa sob as telhas do lar.” Essa frase, ao mesmo tempo simples e profunda, resume muito de sua filosofia. Não se trata de paz como utopia inalcançável, mas como escolha cotidiana, pequena, doméstica. Em tempos em que se grita por justiça, mas pouco se constrói em silêncio, sua fala soa quase revolucionária.
Trouxe a psicologia para o centro do espiritismo com as obras de Joanna de Ângelis, antecipando, em décadas, o atual interesse pelo diálogo entre ciência e espiritualidade. Era um discípulo de Allan Kardec, mas com o coração de Francisco de Assis.
Seus últimos anos foram marcados por fragilidade física, mas nunca por silêncio. Continuou a escrever, a receber visitantes, a aconselhar. Não viveu recluso nem se entregou à idolatria. Morreu como viveu: sereno, discreto, lúcido. No fim das contas, talvez o maior legado de Divaldo seja esse: ter provado que é possível viver espiritualidade sem ostentação, compaixão sem espetáculo, fé sem fanatismo. Sua vida foi uma longa carta de amor à humanidade.
Jamir Calili, membro da Academia Valadarense de Letras, professor na UFJF, cientista social, advogado e vereador.