O contemporâneo de Arnaldo Antunes

Muitos o conhecem como integrante do grupo de rock Titãs, mas Arnaldo Antunes é algo mais: é um poeta incrível
Arnaldo Antunes sempre esteve em adesão aos experimentos da poesia concreta. Reprodução da Internet
domingo, 1 outubro, 2023

por Amaury Silva

Se o passado é encarregado de fazer emergir a saudade que está em nós, nada mais visceral do que ver e ouvir os Titãs reunidos, com os acordes da guitarra de Marcelo Fromer, integrante da banda falecido em 2001, em razão da origem permanente no percurso como efeito contemporâneo. Hoje pais, avós e com carreiras redirecionadas os talentosos músicos e poetas foram dos mais relevantes responsáveis pela afirmação de jovens e adultos dos oitenta como artífices suficientes de um modo próprio de vida e arte.

Apenas o histórico disco Cabeça de Dinossauro de 1986 é bastante para se compreender a posição icônica que a banda e os artistas construíram ao longo de mais de 40 anos, com variações de formações de integrantes, saídas e retornos, até a reunião comemorativa de agora. Não há como se pensar o pop, a arregimentação de inconformismo e protesto juvenil contra o autoritarismo, a resistência, a qualidade acústica do som e intelectual das letras do cancioneiro rock and roll e MPB brasileiros, sem assegurar aos Titãs um lugar de justo privilégio e convicta prioridade.

É certo que às vezes fica meio injusto e extremamente difícil distinguir entre eles, os talentos e as características; quem criou essa ou aquela canção, eu mesmo não acerto quem sejam os compositores de Sonífera IlhaHomem Primata  ou Marvin, mesmo depois de ouvi-las centenas de vezes,  como se fosse simples 8 pessoas em elaboração criativa, dedico os créditos paratodos, à ideia de que ao estarem juntos superam o individual como mero detalhe. Mas, quanto à poesia de Arnaldo Antunes é necessário que se conheça em paralelo à obra do Titãs, mas reservando-se o espaço para a manifestação do lirismo que busca outras formas de partilha com o leitor.

E Arnaldo sempre esteve em adesão aos experimentos da poesia concreta. Da forma escrita canônica, aos arranjos visuais e fotografias. O saudoso professor Arlindo Machado creditou a Arnaldo, uma das obras-primas da nossa videoarte, incorporação da poesia falada com a imagética no clipe de O Silêncio, composição de Arnaldo com Carlinhos Brown.

Em 2021, Arnaldo Antunes publicou pela Companhia das Letras, o livro de poemas, Algo antigo. Isolamento pela pandemia, massificação midiática, política, passado e vida soam no movimento do contemporâneo que o poeta ultraconcreto traz como concepção para sentir o mundo de hoje, sem desvencilhar-se de que há continuidade e ressignificações. A unicidade temporal apregoada por Arnaldo aparece em Lápide: aqui jaz / o presente / eterno porque eterna /  mente / fugaz. O efeito da emissão poética com os versos centralizados na página, suscitando uma lápide sepulcral, envolve a mescla da palavra com o grafismo, característica presente na produção do artista.

Arnaldo Antunes na sua combinação de modos formais expõe a ideia existencialista da dúvida, limitações e ações humanas em um caligrafismo próprio com mensagem que não é cifrada, mas explosiva da emoção humana. Em Nem sei pensei normaliza-se passos da vida em hesitação e decisão, como uma condição natural, às vezes legível, em outras a ser decifrada.

O poeta AA é contemporâneo porque se articula com sua obra como o filósofo Giorgio Agamben define as características da contemporaneidade. Para ser contemporâneo não é viável a adesão sem impactos ao próprio tempo, em uma harmonia aparente com a atualidade. É preciso ser intempestivo, fora do tempo, para ser contemporâneo. Só assim se consegue enxergar o tempo de hoje sem amarras. É a intempestividade que fornece os meios para se enxergar as trevas dos tempos atuais. Só com os olhares no tempo passado, podemos ver a escuridão no tempo que flui.

Arnaldo é a voz, letra, música, imagem, palavra lida, cantada, desenhos, gráficos, vídeos. Não se enxergou por completo nas formas de agora, transitou fora do tempo de hoje, para enxergar os pontos de obscuridade, construindo a poesia de variáveis expressões, que alcança todos os tempos e edifica a poesia contemporânea.

Amaury Silva é Juiz de Direito, professor da Faculdade de Direito Vale do Rio Doce e aficionado do universo literário.

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