A mitologia grega nos traz inúmeras histórias que nos aju- dam a compreender a vida cotidiana. Um mito particularmente relevante para a gestão pública, especialmente durante a troca de comandos nas prefeituras, é o mito de Sísifo. Sísifo era o astuto rei de Éfira, mais tarde conhecida como Corinto.
Conhecido por sua inteligência e trapaças, Sísifo enganou os deuses várias vezes, violando as leis divinas e mortais. Um de seus maiores feitos foi enganar a Morte, Thanatos, aprisionando-a e, assim, evitando que qualquer ser humano perecesse. Isso causou grande desordem no mundo, até que Ares, o deus da guerra, libertou Thanatos e entregou Sísifo ao submundo.
Como punição por suas ações, os deuses condenaram Sísifo a uma tarefa interminável: ele foi condenado a rolar uma enorme pedra montanha acima, porém, cada vez que se aproximava do topo, a pedra rolava montanha abaixo, forçando Sísifo a recomeçar sua tarefa eternamente. Este castigo simboliza a vida de muitas pessoas e organizações que vivem um eterno recomeçar. Apesar do esforço, do tempo despendido e da dedicação e da energia gasta, quando estamos prestes a ter alguma conquista, algo acontece e tudo vai por terra. Acabamos não terminando as coisas que começamos, tomamos atitudes intempestivas, sem planejamento e que somente geram prejuízo. Vivemos como Sísifo, em uma tarefa interminável de rolar a pedra e vê-la retornar.
Na esfera privada, isso deriva de traumas de infância, maus comportamentos e hábitos desenvolvidos ao longo da vida e uma constante autossabotagem. Os psicólogos são os profissionais capazes de reorganizar essas emoções e fazer com que o indivíduo seja capaz de “vencer na vida”.
Na dimensão coletiva, isso é um pouco mais complexo e me- rece uma mudança cultural e institucional muito grande da so- ciedade e das pessoas envolvidas. A tarefa interminável de Sísifo espelha a realidade enfrentada por muitas prefeituras quando há uma troca de administração, especialmente nas que possuem muitos cargos de confiança. A mudança de comando muitas ve- zes resulta numa curva de aprendizado significativa, durante a qual novos gestores precisam se familiarizar com processos, pro- jetos e problemas deixados pelos antecessores.
Durante essa fase de adaptação, muito do trabalho e progres- so pode ser perdido, como a pedra de Sísifo que rola montanha abaixo. As novas gestões frequentemente buscam começar do zero ou tentam refazer o que já havia sido iniciado, resultando em desperdício de tempo e recursos, e em frustração para todos os envolvidos. Quando os líderes eleitos percebem, o mandato já está quase se encerrando e a pedra ainda não atingiu o cume.
A necessidade de se pensar em uma continuidade inteligen- te entre gestões é, portanto, essencial. Para evitar a síndrome de Sísifo na administração pública, é fundamental implementar sistemas que garantam a transferência de conhecimento e a con- tinuidade dos projetos. Estratégias incluem:
a) a criação de um plano de transição bem estruturado, que envolva a documentação detalhada de projetos em andamento, com prazos, orçamentos e metas claras, além da identificação das principais dificuldades e soluções já tentadas. Além disso, é crucial que os novos gestores sejam acompanhados por equipes de transição compostas por servidores públicos experientes, que possam orientar e oferecer o suporte necessário durante o período de adaptação;
b) por outro lado, o serviço público precisa ser visto como um serviço profissional e técnico, no qual a confiança e os resul- tados derivam de bons arranjos institucionais, focados na lega- lidade e na participação popular. Isso faz com que as trocas de governo não signifiquem a perda do "know how" institucional adquirido com tentativas frustradas passadas;
c) é preciso ter bons e claros processos definidos baseados em protocolos registrados e assimiláveis pelos novos gestores que precisam, tal como os servidores efetivos, passar por proces- sos contínuos de capacitação;
d) a continuidade dos projetos também exige a construção de uma cultura de gestão pública voltada para a sustentabilida- de e o longo prazo, onde as prioridades não se alterem a cada nova eleição, mas sim sejam ajustadas conforme as necessidades reais da população e o andamento dos programas. Isso pode ser alcançado por meio de políticas públicas que integrem diferen- tes áreas e garantam a participação da sociedade, além de uma fiscalização eficaz que assegure a continuidade dos trabalhos.
Quando essas estratégias são bem aplicadas, o mito de Sísi- fo pode ser quebrado. As administrações públicas deixam de ser condenadas a recomeçar eternamente, e conseguem efetivamen- te atingir seus objetivos, com maior eficiência e menos desperdí- cio de recursos. O verdadeiro progresso não é só o alcance de me- tas, mas a construção de um processo que se mantém sólido, não importa quem esteja à frente da gestão. Dessa forma, é possível transformar as pedras em obstáculos superáveis e garantir que as vitórias da administração pública sejam reais e duradouras, beneficiando a sociedade na totalidade.
Jamir Calili é vereador em Governador Valadares e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus GV