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Entre a Norma e a Ressaca: A contribuição literária de Machado ao Pensamento Jurídico

Leia a coluna desta semana de Jamir Calili
Machado de Assis. Foto: Reprodução da Internet
domingo, 15 junho, 2025

por Jamir Calili

Dedico esta coluna de domingo ao Jubileu de Ouro da Academia Valadarense de Letras, que será celebrado neste ano de 2025, com maior destaque para o mês de agosto, quando celebraremos os 50 anos desta instituição cultural. Um texto maior e mais completo, com este mesmo tema, será publicado na Revista Suindara, que celebrará os 50 anos desta linda história.

O Direito busca respostas, a Literatura cultiva perguntas. Nesse contraste, encontra-se Machado de Assis. A leitura de "Dom Casmurro" revela-se um campo fértil para pensar o Direito não apenas como sistema normativo, mas como espelho das tensões humanas e sociais. A literatura, ao contrário do Direito, não oferece soluções definitivas, mas provoca questionamentos constantes. Mergulhar em Machado permite compreender que a dúvida, o conflito e a ambiguidade são partes essenciais da condição humana – e da prática jurídica.

Essa crítica se intensifica quando observamos a atualidade da obra machadiana. A filosofia do Direito só rompeu com a ideia de neutralidade normativa nas últimas décadas do século XX. Ainda hoje, expressões como “dura lex sed lex” permeiam decisões judiciais, alimentando o mito da imparcialidade. É nesse contexto que a literatura assume papel essencial para quem atua no universo jurídico.

Goleman, psicólogo americano, ressalta a importância do foco, do autoconhecimento emocional e da visão de longo prazo. Para ele, a capacidade de projetar cenários e decidir com base em objetivos amplos é a chave do pensamento estratégico. A literatura, ao lidar com personagens e dilemas complexos, estimula essa habilidade. Leitores atentos desenvolvem empatia, criticidade e consciência contextual – virtudes essenciais ao jurista e ao cidadão ético.

A leitura literária ensina a aguardar. Não se conclui nada no primeiro capítulo. Essa espera desenvolve paciência interpretativa, diferente da pressa com que, hoje, se formam convicções com base em informações simplificadas. A literatura educa para o tempo e para a dúvida.

"Dom Casmurro" não é apenas um romance sobre adultério. Até os anos 1960, a leitura dominante era: Capitu traiu ou não traiu? A verdadeira força do romance, contudo, está em sua ambiguidade. Bento é o narrador, e isso compromete a confiabilidade da narrativa. A suspeita recai não apenas sobre Capitu, mas sobre o próprio narrador.

Machado é frequentemente visto como prenúncio da psicanálise. Sua obra antecipa temas como recalque, paranoia e conflito inconsciente. A construção de Capitu – com seus olhos “de ressaca” – revela mais sobre Bento do que sobre ela. A morte de Escobar e o choro de Capitu no velório selam, para Bento, a convicção da traição. Não há provas, apenas impressões. A dúvida se impõe.

Do ponto de vista jurídico, o adultério perdeu relevância. Não é mais crime, e a paternidade pode ser resolvida por exame de DNA. A dúvida legal desaparece; a dúvida humana, não. Isso evidencia o valor da literatura: não resolver casos, mas entender sentimentos e motivações.

Machado critica a retórica jurídica. José Dias, personagem dúbio, afirma: “As leis são belíssimas, mas muito mais belos são os olhos de Capitu”. A frase contrapõe a frieza normativa à força da emoção e da aparência. O Direito muitas vezes encena soluções formais; a literatura questiona essas aparências. "Dom Casmurro" se aproxima mais da psicanálise do que do Direito. Trata-se menos de culpa e mais de angústia.

Em tempos de julgamentos apressados, Machado ensina a conviver com a incerteza. E talvez esse seja o maior ensinamento que a literatura pode oferecer ao Direito: escuta, complexidade e hesitação. O ato de julgar requer atenção e não precipitação. A leitura literária desenvolve visão estratégica e crítica. Como o bom julgador, o leitor de Machado aprende que o sentido não é imediato – ele se constrói no tempo.

A literatura forma a sensibilidade jurídica. Mais que conhecer a norma, é preciso entender o drama humano por trás de cada caso. A literatura amplia o repertório moral, histórico e emocional. Ensina a escutar, duvidar e imaginar. Em contraste com o discurso jurídico tradicional, que tende à certeza, a literatura permite explorar ambiguidades. Assim, contribui para um Direito mais humano e mais atento à sua função transformadora. Machado não oferece respostas: apenas o espelho da dúvida. Ao Direito, cabe reconhecer esse reflexo.

Jamir Calili, professor da UFJF, vereador, membro da Academia Valadarense de Letras, na cadeira de Machado de Assis.

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