por Jamir Calili
Dedico esta coluna de domingo ao Jubileu de Ouro da Academia Valadarense de Letras, que será celebrado neste ano de 2025, com maior destaque para o mês de agosto, quando celebraremos os 50 anos desta instituição cultural. Um texto maior e mais completo, com este mesmo tema, será publicado na Revista Suindara, que celebrará os 50 anos desta linda história.
O Direito busca respostas, a Literatura cultiva perguntas. Nesse contraste, encontra-se Machado de Assis. A leitura de "Dom Casmurro" revela-se um campo fértil para pensar o Direito não apenas como sistema normativo, mas como espelho das tensões humanas e sociais. A literatura, ao contrário do Direito, não oferece soluções definitivas, mas provoca questionamentos constantes. Mergulhar em Machado permite compreender que a dúvida, o conflito e a ambiguidade são partes essenciais da condição humana – e da prática jurídica.
Essa crítica se intensifica quando observamos a atualidade da obra machadiana. A filosofia do Direito só rompeu com a ideia de neutralidade normativa nas últimas décadas do século XX. Ainda hoje, expressões como “dura lex sed lex” permeiam decisões judiciais, alimentando o mito da imparcialidade. É nesse contexto que a literatura assume papel essencial para quem atua no universo jurídico.
Goleman, psicólogo americano, ressalta a importância do foco, do autoconhecimento emocional e da visão de longo prazo. Para ele, a capacidade de projetar cenários e decidir com base em objetivos amplos é a chave do pensamento estratégico. A literatura, ao lidar com personagens e dilemas complexos, estimula essa habilidade. Leitores atentos desenvolvem empatia, criticidade e consciência contextual – virtudes essenciais ao jurista e ao cidadão ético.
A leitura literária ensina a aguardar. Não se conclui nada no primeiro capítulo. Essa espera desenvolve paciência interpretativa, diferente da pressa com que, hoje, se formam convicções com base em informações simplificadas. A literatura educa para o tempo e para a dúvida.
"Dom Casmurro" não é apenas um romance sobre adultério. Até os anos 1960, a leitura dominante era: Capitu traiu ou não traiu? A verdadeira força do romance, contudo, está em sua ambiguidade. Bento é o narrador, e isso compromete a confiabilidade da narrativa. A suspeita recai não apenas sobre Capitu, mas sobre o próprio narrador.
Machado é frequentemente visto como prenúncio da psicanálise. Sua obra antecipa temas como recalque, paranoia e conflito inconsciente. A construção de Capitu – com seus olhos “de ressaca” – revela mais sobre Bento do que sobre ela. A morte de Escobar e o choro de Capitu no velório selam, para Bento, a convicção da traição. Não há provas, apenas impressões. A dúvida se impõe.
Do ponto de vista jurídico, o adultério perdeu relevância. Não é mais crime, e a paternidade pode ser resolvida por exame de DNA. A dúvida legal desaparece; a dúvida humana, não. Isso evidencia o valor da literatura: não resolver casos, mas entender sentimentos e motivações.
Machado critica a retórica jurídica. José Dias, personagem dúbio, afirma: “As leis são belíssimas, mas muito mais belos são os olhos de Capitu”. A frase contrapõe a frieza normativa à força da emoção e da aparência. O Direito muitas vezes encena soluções formais; a literatura questiona essas aparências. "Dom Casmurro" se aproxima mais da psicanálise do que do Direito. Trata-se menos de culpa e mais de angústia.
Em tempos de julgamentos apressados, Machado ensina a conviver com a incerteza. E talvez esse seja o maior ensinamento que a literatura pode oferecer ao Direito: escuta, complexidade e hesitação. O ato de julgar requer atenção e não precipitação. A leitura literária desenvolve visão estratégica e crítica. Como o bom julgador, o leitor de Machado aprende que o sentido não é imediato – ele se constrói no tempo.
A literatura forma a sensibilidade jurídica. Mais que conhecer a norma, é preciso entender o drama humano por trás de cada caso. A literatura amplia o repertório moral, histórico e emocional. Ensina a escutar, duvidar e imaginar. Em contraste com o discurso jurídico tradicional, que tende à certeza, a literatura permite explorar ambiguidades. Assim, contribui para um Direito mais humano e mais atento à sua função transformadora. Machado não oferece respostas: apenas o espelho da dúvida. Ao Direito, cabe reconhecer esse reflexo.
Jamir Calili, professor da UFJF, vereador, membro da Academia Valadarense de Letras, na cadeira de Machado de Assis.