Enquanto arranhamos a tampa do caixão, eles jogam terra

A agonia do sofrimento escolar e a desídia da gestão pública – Parte 1
Crianças chegando à escola. Foto: Marcelo Camargo Agência Brasil
domingo, 1 outubro, 2023

por Lo-Ruama Lóring Bastos

“Há momentos em que tudo nos cansa, até o que nos repousaria”. Bernardo Soares, o ajudante de guarda-livros, da cidade de Lisboa parece conhecer os abatimentos de uma alma. A noite passada durou um domingo inteiro e “o meu coração batia como se soluçasse”.

O relógio marcava 4h e desde que fiz uma higiene do sono, há mais de dois anos, não passava uma madrugada desperta com tantas questões educacionais em pauta (digo, educacionais!). Para não ceder à insônia da minha natureza notívaga, insisti em permanecer deitada.

Mas tem hora que o desassossego é vulcânico. Tentei resistir ao impulso de pular da cama; entretanto, falta-me ar! Reflito e vejo que respiro; pisco os olhos – se bobear, enxarco os dois com motivos escolares, que insistem demonstrar irresolutos.

É isto! A Educação Básica Pública é o meu desassossego (atualizado com sucesso!). Vou esclarecer: eu trabalho com a formação docente e, neste bonito e laborioso ofício, tenho um objetivo-propósito: constituir uma qualidade honesta de educação, em que não só as leis, as teorias, as políticas públicas, as ods, as metodologias, os materiais didáticos, os livros literários e as promessas de amor eterno tenham um elevado padrão de qualidade discursivos.

O que busco – e sei que tenho companhia de educadores incríveis por aqui – é que os professores também tenham qualidade, os gestores tenham qualidade, os alunos tenham qualidade, o ensino, a aprendizagem, o critério avaliativo, o ambiente, os assuntos coletivos, os projetos, as trocas, a convivência, as relações, o contexto escolar... anseio e batalho para que tudo tenha qualidade. É um trabalho de formiguinha, de Dom Quixote, de gente que ainda acredita em gente, mas, que não está livre de choro e ranger de dentes, de fracassos e flagrantes noites de desassossego. A diferença está em acreditar que é absolutamente possível.

Ainda que “uma mão fria aperta-me a garganta”, no “negrume surdo” da noite e conflite os pensamentos dos meus desassossegos, sempre que um educador me expõe a “dolorida paisagem” de seu ofício e descreve uma realidade escolar cheia de bolor em fermentação, que só faz gastar a sua alma, eu enxergo para além de estragos e nódoas; enxergo saídas possíveis.

E como acontece com a Justiça, para que a saída exista é preciso fazê-la. Saídas não são mágicas, estas são improváveis. O que há, é uma fazedura imparável de técnicas que atuam por partes, por problemas, por segmentos, por dores, por critérios, por nós, por você e pelos seus.

Os relatos recebidos dos educadores são de natureza costumaz. Há dor coletiva, preocupações sociais; mas, é o indivíduo que tudo carrega. O sol nasce pra todos, mas, o “entornar dos céus” decide os ombros. Interajo com professores, no Brasil e no exterior que vivenciam situações degradantes, onde são condicionados a perceberem uma Educação desvalida, irresoluta. Quando se vive num “apocalipse de angústia”, não é raro perder a fé em si, no outro, no sistema, na própria humanidade.

Neste contexto escolar, de “loucura lenta de desconsolo”, não é difícil andar pelos corredores e esbarrar na infelicidade. Ela não cabula aula, é regular e anda pra lá e pra cá no lombo dos educadores, que se dividem entre o que esperançam, os que se desesperam e os que nada esperam. Ainda que haja o grupo da esperança, todos têm bagagem com frete. A docência hoje, parece “um poço de sonhos que esqueceu de sonhar até o fim”.

Aguarde a parte II

Lo-Ruama Lóring Bastos é Mestra em Educação e Docência (UFMG); Pesquisadora; Historiadora; Professora; Especialista em HQ; Formação Docente; Metodologias de Ensino; Avaliações Diagnóstica, Sistêmica e Externas (Saeb/Ideb/Pisa); Devolutivas Pedagógicas; Mal-estar Docente; Cultura de bem-estar Escolar; BNCC e Letramento Socioemocional.

Gostou? Compartilhe...

Leia as materias relacionadas

magnifiercrossmenu