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Direitos culturais: uma teoria

O articulista Amaury Silva escreve sobre as falsas questões acerca da cultura, propondo um debate saudável sobre os direitos culturais
Imagem ilustrativa reproduzida da Internet
domingo, 14 julho, 2024

POR AMAURY SILVA

Já se foi o tempo no qual a cultura era uma identidade da hierarquia entre  classes, pessoas, grupos ou extratos de conhecimento.  Essa distinção vai ficando no horizonte de uma percepção retrógrada e só enxergada por um retrovisor opaco, que, seguramente se apagará por completo. A luminosidade para a cultura tem a força energética da cidadania.

Os elementos que formam o eixo de sustentação da cultura na atualidade se apoiam na sociologia e na antropologia. A compreensão do significado da cultura e a aplicação de seus preceitos não pode ser dissociada da própria humanidade. É a própria caracterização intrínseca do homem como ser cultural, a partir das resultantes nas relações entre os homens e a coletividade, com o simbólico e a representação, traduzindo as expressões de uma maneira de ser e conviver.

Se é do modo de ser, estar, pensar e agir no mundo que se faz a matéria-prima da cultura, o seu ponto de contato com o direito não é segredo ou reserva para quem pensa nas interseções inadiáveis das aproximações. Quem é produto de quem? O direito é resultado da produção cultural? Ou será a cultura o precedente do jurídico? É com esse dilema, ou falso dilema, que o professor Humberto Cunha Filho, em compreensões preliminares inicia uma fecunda abordagem sobre direitos e cultura em seu livro: Teoria dos Direitos Culturais – Fundamentos e Finalidades, Edições SESC, 2a edição, 2020.

 A hipótese exteriorizada no estudo é no sentido de uma relação que na dualidade entre cultura e direito, constata a relação de dependência e reciprocidade, como vasos geminados, que asseguram a vitalidade a ambos. E essa posição é essencial para a defesa de uma linha teórica que vise contemplar os direitos culturais como módulos integrantes da plataforma dos Direitos Humanos.  Muito, cuidadosamente, o professor Humberto esclarece quanto à origem latina da expressão cultura, vinda do verbo colère, como cultivar, cuidar de, tratar até uma possível taxonomia entre aspectos político, econômico e social.

 E o ponto conclusivo sobre o qual o direito deverá tratar a cultura, para o autor, enseja o entendimento da cultura como a produção humana vinculada ao ideal de aprimoramento, visando à dignidade da espécie como um todo, e de cada um dos indivíduos. É certo que o pesquisador fixa um arbitramento do resultado produtivo da cultura como aquele encaminhado ou pensado na objetividade da dignidade humana, o que excluiria do rol de acervos culturais, as produções nefastas ou que não fossem condizentes com aquele propósito.

 De toda forma, o enquadramento é muito positivo para se descortinar o que a cultura pode ser para o direito e projeta o que o direito pode realizar como instância normatizante para a cultura. E a primeira relação nesse contexto, é a previsão do art. 215, Constituição Federal, incumbindo ao Estado que assegure o pleno exercício dos direitos culturais, medida destinada a todos os cidadãos. O dispositivo materializa parte da segunda dimensão dos direitos humanos, como anotado no art. 22, 26, e 27, Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948).

 Para definir a cultura e o patrimônio cultural brasileiro, a tarefa coube ao art. 216, CF, que os fez sob um regime de expansão e que se é elogiável pela perspectiva democrática abrangente, pode ser criticada pela dificuldade de limitação do objeto, o que em termos de hermenêutica jurídica é fundamental. Para tanto e para nós, o patrimônio cultural brasileiro é composto por bens materiais e imateriais, considerados no plano individual ou coletivamente, que expressem referência à identidade de diferentes grupos que componham a sociedade brasileira.

 Se na relação entre cidadania e Estado, situa-se o elo para que a plenitude do exercício dos direitos culturais seja implementada, vislumbra-se o instrumento das políticas públicas para esse mister. O professor Humberto salienta ao longo de sua reflexão que no Brasil, o Plano Nacional de Cultura e o Sistema Nacional de Cultura (art. 216-A, CF) devem ser utilizados nesse contexto. E esclarece mais, classificando nossa Constituição Federal como dirigente (aqui parafraseando o constitucionalista português, José Joaquim Gomes Canotilho, para quem as Cartas Políticas com essa característica tem pouca confiança na política, e, por isso, já estabelecem programas e obrigações de pronto para o Estado), o engessamento das ações contemporâneas pelos gestores eleitos de modo legítimo impedem o próprio fluxo da dinâmica social, tão relevante para o ambiente cultural.

 E para justificar que o excesso de dirigismo na cultura, advindo do formato constitucional pode ser no mínimo inconveniente, o autor comenta sobre a sensibilidade de Canotilho que fez a revisão de alguns parâmetros quanto às vantagens da Constituição dirigente. Preconiza por uma busca de harmonização, a engrenagem da mutação, que serviria como potência de atualização dos textos constitucionais, para que premissas não contemporâneas, mas impregnadas de valores vigentes produzam efeitos de compatibilidade para aproveitamento de regras atuais.

 A importância do amadurecimento de uma teoria dos direitos culturais é universal, mas muito emergencialmente brasileira. Pensar a esse respeito é afirmar a cidadania como o ambiente indispensável, para que nenhum homem habite sozinho o mundo, e, em razão disso perca a sua humanidade, como Hannah Arendt lembrada pelo professor Humberto, consignou na sua clássica obra A condição humana (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008).

Sobre o autor:

Amaury Silva é juiz de direito e professor da Fadivale. Escreve aos domingos na edição impressa do Jornal da Cidade GV

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