Cohen múltiplo: acordes, versos e romances

Amaury Silva, colunista do JC, escreve sobre o multi-instrumentista Leonardo Cohen
Multi-instrumentista, Leonardo Cohen declamava poemas em shows próprios e de terceiro. Foto: Divulgação
terça-feira, 19 março, 2024

Quando a efervescência do talento sai por todos os poros da criatividade é possível a identificação daqueles que são os múltiplos fatoriais da arte e da cultura. Caminham com a mesma elegância entre a sensibilidade de unificar versos e melodias, ou a sofisticada e complexa tarefa de tecer enredos em romances. Ora, soltam rimas e palavras, libertando acordes e em outras oportunidades o risco do esboço, a imagem e as cores se tornam os instrumentos de uma expressividade que não pode ser contida.

Essa energia não é soberba, mas sobra, que é bem encaminhada para uma produtividade interdisciplinar em termos da manifestação artística.  Hallelujah, porque tivemos a chance de ouvir, ler e ver as obras de Leonardo Cohen. Mais conhecido pela icônica canção, o judeu canadense esteve na prosa e na poesia de qualidade; foi cantor e compositor e artística plástico.

 Seu autoexílio na Grécia de 1960 foi regado a muitos dos ingredientes da contracultura e da postura diante da vida em transição naquela época. De rica família da cidade de Quebec, a imersão na poesia se deu a partir do contato com os escritos do espanhol García Lorca. No cardápio da sua primeira obra Let us Compare Mythologies (Comparemos mitologias) de 1956, o sexo e a violência foram temas marcantes.

Multi-instrumentista, Leonardo declamava poemas em shows próprios e de terceiros, fazendo uma imitação do beat, Jack Kerouac, mas sua estada em Nova York encerrou-se em 1959 quando foi para a Inglaterra, para produzir e publicar seu primeiro romance, e, logo em seguida mais poesia com The Spice-Box of Earth (A caixa de especiarias da Terra), em 1961.

 O romance, A brincadeira favorita de 1963, em tom autobiográfico é marcante vetor das buscas humanas pelo afeto, imersões existenciais e desalento quanto aos obstáculos, dificuldades e as perdas. Seguiram-se experiências pessoais de amores e vida alternativa; visita à Cuba, o impacto da revolução que poderia mudar o mundo, levando a um ensaio inacabado Famoso diário de Havana.

 Flores para Hitler e Parasitas do Paraíso foram outras jornadas poéticas, a última com letras que se transformaram mais adiante em canções famosas como Suzanne e Avalanche. Ao relento dos efeitos de álcool e drogas, Cohen finaliza o romance Beautiful Losers que não esconde uma estrutura psicodélica e permeia temas sensíveis como religião, excessos e violência.

A inauguração da trajetória efetiva na música se dá com Songs of Leonard Cohen e uma sequência de carreira entre a emblemática concepção dos temas difíceis e uma gigantesca popularidade. Torna-se um emérito do folk-rock. O lirismo no poema O GÊNIO (POR VOCÊ EU SEREI UM JUDEU DO GUETO), dá mostras da explosão visceral com a qual Cohen encarregou sua vida como condutora permitida e que se manifesta também na arte: Por você / Eu serei um judeu do gueto / E dançarei / E calçarei meias brancas / Em meus membros deformados / E envenenarei as nascentes / Pela cidade / Por você / Eu serei um judeu apóstata /  E direi ao sacerdote espanhol / Sobre o juramento de sangue / No Talmude / E onde estão escondidos / Os ossos da criança / Por você / Eu serei um judeu banqueiro / E levarei à ruína / Um velho e orgulhoso rei caçador / E darei fim à sua linhagem /  Por você / Eu serei um judeu da Broadway / E chorarei pelos teatros / Por minha mãe / E barganharei quinquilharias / Embaixo do balcão / Por você / Eu serei um judeu doutor / E procurarei / Em todo o lixo latas para prepúcios / Para costurá-los de volta / Por você / Eu serei um judeu de Dachau / E deitarei no visgo / Com meus membros desfigurados / E inchados de dor / de modo que nenhuma mente possa entender.

Hallelujah emociona em letra e música. Se não foi produzida para ser um testemunho de fé, mas de dúvida espiritual e da insuficiência de ser humano e não serviu de consolo aos desvalidos, mas transformado em hino para a saudação divina, confirma-se o caráter universal da arte, ao mesmo tempo revela que o autor não detém um segundo de controle sobre o sentimento do público ouvinte, leitor ou contemplativo que ornamenta e dá substância ao seu fazer. Cohen não se resume ao acorde secreto; esteve no verso que entonou a paixão e na trama reveladora dos dramas e incompletudes de ser parte de um todo, sempre flexível à sequência de fragmentos e movimentos da multiplicidade.

Amaury Silva é Juiz de Direito e professor da Fadivale

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