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A negligência política contra o esporte e o lazer

Leia a coluna desta semana de Jamir Calili
Festival da Amizade 2024, promovido pela Secretaria Municipal de Esporte, Lazer e Juventude. Curitiba, 11/05/2024. Foto: José Fernando Ogura/SMCS
domingo, 1 junho, 2025

por Jamir Calili

Nas universidades, nas políticas públicas e dentro das famílias, um mesmo fenômeno se repete com inquietante naturalidade. Pelo menos na maior parte dessas instituições e serviços, o esporte e o lazer, embora fundamentais à formação do ser humano integral, são tratados como atividades de segunda ordem ou como atividades supérfluas, geralmente associadas às pessoas que não tem responsabilidades mais importantes a serem realizadas. Para o pensamento dominante, ou essas pessoas já atingiram um patamar financeiro alto que permita que eles negligenciem outras atividades ou eles não têm responsabilidade. Em diversas ocasiões, esportistas profissionais ou amadores são vistos como executores de atividades menores.

A arte e a cultura, embora sofram de visão parecida, ainda ocupam reconhecimento mais expressivo, sendo tachados como expressões superiores da civilização, possuindo espaços mais “privilegiados” nos currículos, nas leis de incentivo e nos editais. Já o esporte, o movimento e o lazer (especialmente o lazer), quase sempre são tolerados com certa condescendência, como se fossem distrações vazias.

A distorção começa onde mais deveria ser corrigida: dentro das universidades. Para se ter uma ideia da questão, em uma faculdade pública em que sou professor, há em curso uma discussão sobre um novo sistema de registro de horas de trabalho para professores. A proposta que deve ir à votação prevê até 10% da carga horária para atividades culturais e artísticas, o que é louvável, embora não haja uma linha sequer dedicada ao esporte ou ao lazer. Importa destacar que não me refiro aqui à prática pessoal de lazer por parte do professor, mas sim do desenvolvimento pelos cursos de práticas esportivas ou de lazer como programa pedagógico e institucional. A omissão é reveladora. Ela traduz uma hierarquia simbólica: cultura e arte seriam expressões elevadas do espírito; esporte e lazer, ocupações quase levianas do corpo.

Esse pensamento não é novo. Vem de uma longa tradição ocidental, especialmente nos cursos mais academicistas, que dissociou corpo e mente, razão e emoção, ciência e sensibilidade. O problema é que este pensamento está equivocado — e custa caro. Hoje sabemos, por uma vasta produção científica, que a prática esportiva regular melhora o desempenho cognitivo, favorece o equilíbrio emocional, previne doenças e forma valores como cooperação, superação e disciplina. Como afirma Ken Robinson em ‘O Elemento’, “o corpo não é apenas um transporte para a cabeça”.

De diferentes pontos de vista, esta negligência provoca prejuízos. Para a saúde pública e coletiva, o sedentarismo custa bilhões aos cofres dos Estados. Na educação, o esporte ensina o respeito às regras, o valor do esforço e a experiência do fracasso. Pensando economicamente, o setor movimenta indústrias bilionárias, gera empregos e promove desenvolvimento local. Do ponto de vista social, o lazer qualifica o tempo, humaniza a existência e constrói laços. Trata-se, portanto, não de luxo, mas de necessidade. Inclusive, diga-se, é uma forma eficaz de produzir consciência coletiva e senso de pertencimento, ideias úteis para o processo político democrático. Não é à toa que os países mais desenvolvidos do mundo investem no esporte como estratégia de projeção internacional, mas também como política pública estruturante.

É preciso ensinar a educação física e o trabalho de lazer e descanso, com a mesma seriedade do ensino da matemática. Na gestão pública, continuamos negligenciando políticas estruturadas que democratizem o acesso ao esporte e ao lazer, especialmente nas periferias urbanas. No espaço familiar, legitimamos o sacrifício do esporte e do lazer em família em nome da produtividade econômica. Há pais e mães que sequer têm opção a esporte e a lazer. O sistema econômico desprestigia visivelmente a família. A psicóloga Ellen Galinsky afirma que uma das sete habilidades essenciais para o século XXI é a capacidade de manter foco e controle do tempo, algo que se aprende também no lazer, na fruição e na experiência do “não fazer”. O pensador francês Roger Caillois, que estudou profundamente os jogos e o lúdico, lembrava que o jogo é uma simulação do mundo, onde se elaboram normas, alianças e estratégias — um espaço de aprendizagem por excelência.

É preciso resgatar a ideia de que o ser humano é um todo indivisível, como já ensinavam os gregos antigos com seu ideal de mens sana in corpore sano. O lazer é o tempo em que o sujeito se refaz, cria, sente, observa. O esporte é ciência e consciência do corpo em movimento, é ética em ação, é pedagogia da convivência. Ao mantermos a exclusão simbólica do esporte e do lazer dos espaços nobres do saber, seguimos formando mentes brilhantes, corpos adoecidos e corações exaustos. E isso não é formação plena — é amputação silenciosa. O jogo precisa mudar. E já passou da hora.

Jamir Calili, professor da UFJF, vereador, membro da Academia Valadarense de Letras, na cadeira de Machado de Assis.

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