2024: SERÁ MESMO, NOVINHO EM FOLHA? (PARTE II)

A ideia de um ano “novinho em folha” parece ficar, ainda mais assombroso, quando a Educação Básica Pública surge como referência na metáfora. Quão realmente novo será 2024 para a escola?
Para a escola, 2024 será um ano realmente novo? Eis a questão! Foto: Imagem ilustrativa/Reprodução da Internet
sexta-feira, 2 fevereiro, 2024

Por Lo-RuamaLóring Bastos

Quando compreendemos como a vida é imensa e que não é feita apenas de nossas escolhas e, que contingências e consequências estão aí para desafiar propósitos e sentidos; parece que passamos a considerar que, independentemente de planos e alternativas, mudanças profundas não acontecem da noite para o dia.

O ser humano quer sonhar, se iludir em muitas situações da vida, só que custa caro negar a existência de uma realidade concreta, de coisas que continuam e de outras que permanecem. Não existe um rompimento brusco, há arrastamento de situações.

E como já foi dito, muito mais,do que ser um fatorcalendarista, apassagem de um ano para o outroestá ligada a uma tradição, onde poucos escapam da tentadora sensação otimista das grandes transformações que a ideia do novo trará.Não é umimperativo cantar “adeus ano velho, feliz ano novo”; oimperativoéacreditar.

Na cultura ocidental, de uma maneirageral, não é socialmente festivo problematizara fantasia que envolve o sentimento de esperança nas celebrações que simbolizam finitude, começo ou recomeço.

Um novo ano letivo, por exemplo, não representa um rito com importâncias e superstições que invoquem expectativas otimistas.

É uma cortesia que a cultura concede ao réveillon, Natal ou aos aniversários, é a relevância em escala global, que um básico e humilde ano letivo não possui.

A ideia de um ano “novinho em folha” parece ficar, ainda mais assombroso, quando a Educação Básica Pública surge como referência na metáfora. Quão realmente novo será 2024 para a escola?Que tela em branco é essa, que a gente chega na escola e está toda‘borrada’? O que a comunidade escolar consegue esperançar,de mudança possível em sua realidade?

Acabará o cenário caótico das precárias condições do trabalho docente? E a humilhação social da profissão, será rechaçada? Se temos à frente, um ano letivo novinho em folha, que horas que toda a desgraça que arruína a educação dará trégua e descanso? Haverá justiça no aumento salarial? Respeito dos alunos e aos alunos?

A gestão condicionará situações que garantam integridade física, emocional e ambiental de docentes e discentes?A escola poderá contar com o dever constitucional de assistência, presença e cuidado da família com seus filhos em idade escolar?

De que maneira será possível ao professor, chegar no trabalho e saber que tudo é novo (sem qualquer referência ao layout físico da estrutura escolar – muito embora, uma reforma seja necessária, pois muitas são similares à presídios ou aos cortiços do Brasil oitocentista). Os profissionais da educação serão reintegrados com dignidade laboral em seus cargos, sem os desvios abusivos de suas funções?

Esse “novo em folha” dará condições ao ensino e à aprendizagem em justa condição de temperaturas climáticas e a gestão pública cuidará da educação em situação de calor ou de frio extremo? O pincel vai acabar? Voltarão com o giz? (“Alergias em baixa, vamos atualizar”!).

Professores serão retaliadospor se posicionarem e exigirem seus direitos? Terão direito ao adoecimento e tratamento? Serão respeitados em sala de aula, na sala dos professores ou na sala dos gestores? Os banheiros terão descarga em bom funcionamento, espelhos sem manchas e sem ferrugem, sabonete e papel higiênico? Terão dignidade no lanche?

Suas confidentes queixas serão pautas para fofocas particulares? O pó de café será de qualidade ou passarão no filtro um pó de serra e ainda servirão frio? O Projeto Político Pedagógico será atualizado com a participação democrática da comunidade escolar?

Os pais estão reclamando da metodologia, do critério avaliativo ou da pedagogia da autonomia? A gestão defende que jáé o século XXI, que a escola não pode ficar defasada (exceto no salário; na estrutura da sala de aula; no livro didático mercadológico; na atualização docente que mal nasceu e já morreu na graduação; nos nutrientes da merenda;nas paredes da cozinha que podem cair a qualquer momento na cabeça das merendeiras ou dos alunos; na secretaria da escola que, quando avista um professor, finge ocupação para não atender demandas de profissionais angustiados?

Haverá acolhimento, compreensão das subjetividades, tolerância às diferenças religiosas, étnicas, raciais, econômicas, culturais ou de gênero? Gestores modificarão as abordagens no tratamento de questões que exijam equidade? Darão valor à gentileza, à empatia e à colaboração?

Ou prosseguirão como estão, porque a escola é uma selva e é bastante comum a caça, o abate e a putrefação dos restos? Ora! Então é aceitar que estamos aí pra morrer e tudo bem? Somos professores! Suportamos altas temperaturas, baixos temperamentos, excesso de hora sem sala, extraclasse e em deslocamentos; fazemos consignados para comprar um notebook; a falta de tempo nos garante manter relacionamentos adoecidos ou quebrados; atuamos em um sistema que garante insalubridade ambiental, física, emocional, psicológica, social e, tudo o mais que houver de precariedade, e que possa arruinar uma categoria profissional dita formadora de todas as outras.

Entretanto, se considerarmos o histórico do sistema de ensino e as péssimas condições de funcionamento que ele mantém nas escolas, sem muito esforço, a comunidade escolar verá, outra vez, um ano letivo novinho em folha chegar para uma escola velhinha em trapos.

Isto, porque há uma repetição insistente, de uma gama de prática que prejudica a escola, que, até o que é absolutamente possível modificar, sem a mínima interferência dos políticos, a escola vai lá e reitera.

E isso acontece logo no início de cada ano e a primeira reunião pedagógica parece um infinito déjà vu. Os condutores das reuniões, com algumas exceções, abrem as atividades escolares num paradoxo entre o sonoro e o dito. As palavras otimistas são proferidas no contraste de uma rouquidão afônica.

Começam dando alguns avisos sobre as datas comemorativas do calendário: “não marquem coisas pessoais, a escola precisa de você, professor”! Tem o dia do índio (tem escola que não aprende, nem com lei!), tem o dia das mães, dos pais, do meio ambiente, da árvore, de Nossa Senhora, da criança, do professor (vai ganhar bombom e cartãozinho com frase do Augusto Cury!), tem o dia da Consciência Negra, dia do livro (que quase ninguém lê, mas, tudo bem, basta lembrar e fazer cartaz); em dezembro tem o aniversário de Jesus, confras, amigo oculto e por fim, férias.

A languidez discursiva entrega, sem omissão, a tristeza pelo pouco número de feriados, uma decepção esse 2024! Serão duzentos dias letivos, um lote de umas oitocentas horas repetindo planos, sequências didáticas, PPPs, abordagens interpessoais, ‘estratégias’ avaliativas, metodologias e tudo o mais que nunca deu muito certo.

Em alguma escola, uma alma veterana (com sorte) vai ler um texto do Rubem Alves ou dar “play”numa música do Pink Floyd que façam críticas a certo tipo de educação, que esta mesma gestão escolar faz questão de preservar, até encardir as folhas branquinhas do ano que começa.

Em algum momento de devaneio, espirituosamente maternal, alguém soltará frases de efeito (que acredita ser de encorajamento): “gente, não vamos desanimar”; “Deus proverá”! Um outro alguém relembra um assunto solto – de um pai que foi na escola reconhecer que seu filho odeia estudar e que só se interessa pela tela – e então, “do nada” enfatiza: “aqui na escola só tem TV ‘barriguda’ e fitas VHS, mas a gente que é professor, a gente precisa atualizar nossa prática e saber usar a tecnologia! Lembram da pandemia?”.

Quantos absurdos! Quanta repetição, seu Freud! É um abismo movediço que não parece bastar buraco e escuridão, ainda há o movimento tortuoso da ameaça de sufocamento. É como imprimir o desespero em papel contínuo, de alguma Epson de 1998 e a todo momento ter que consertar os metros das folhas no chão.

É angustiante que, todo ano, o professor tenha que escutar as mesmas orientações, nos mesmos lugares, pelas mesmas pessoas, usando os mesmos materiais, recebendo a mesma miséria e entrando nas mesmas estruturas precárias. Um ano letivo “novinho em folha” é uma fábula que nunca teve sentido moral para a comunidade escolar, principalmente, para o professor.

É como se esse novo ano letivo entregasse ao professor, duas pesadas pochetes emocionais: frustração e angústia. São estas companhias sombrias, que assombramos educadores da escola básica pública brasileira, o ano inteiro.

A preocupação é uma fissura que vem em forma de estresse e de esgotamento laboral, e que muitas vezes são mais confiáveis que qualquer discurso vago e frio que ouvirão no decorrer de 2024.

Após refletir essas continuidades e permanências do sistema educacional, comemorar início de ano letivo parece um escárnio. O professor anda desgostoso, se esforça para continuar num sistema que o condiciona a vender rifapra fazer caixinha e a fazer bandeirola pra festa junina.

Ele não aguenta mais, ler trecho solto, de poema cult sem contexto, sem os propósitos da Educação, da reunião pedagógica e do danado do ano letivo.

Professor não tem preguiça de estudar, ele tem é um profundo desânimo de passar um ano inteiro em reuniões vazias, ouvindo quem não defende e nem acredita que a educação é o único meio de transformação social e, que a partir da valorização da profissão é que acontecerá as principais mudanças.

Ninguém quer fantasiar com metas absurdas, pulinhos em ondas ou calcinha colorida para trazer sorte, riqueza ou amor. O sentimento de esperança que invade os professores brasileiros é de ter reconhecimento social, dignidade laboral, remuneração justa, incentivo formativo e tempo, para possibilitar que contemple a vida e a natureza; ter lazer, poder viajar, estar com a família e gozar de tédio e ócio.Nós sabemos que a criatividade e a imaginação são tão importantes quanto o trabalho e o conhecimento.

Mas a exaustão física e mental, o excesso de trabalho, o estresse ambiental, a pouca paga e a falta de dignidade social estão destruindo a principal classe, que opera no desenvolvimento humano e no crescimento econômico de uma Nação.

Desejamos construir outra escola, outra história. Não é nosso, o desejo de continuar conjugando verbos no pretérito mais-que-perfeito, nem perpetuar práticas e experiências bolorentas. O mal-estar docente e escolar é anterior à 2024, que não duvidamos ter folhas novas, o difícil é que elas não estejam amassadas e amareladas.

Lo-RuamaLóring Bastos é Mestra em Educação e Docência (UFMG); Pesquisadora; Historiadora; Professora; Especialista em HQ; Formação Docente; Metodologias de Ensino; Avaliações Diagnóstica, Sistêmica e Externas (Saeb/Ideb/Pisa); Devolutivas Pedagógicas; Mal-estar Docente; Cultura de bem-estar Escolar; BNCC e Letramento Socioemocional

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