DA AGÊNCIA GOV
Parecia efeito de um bombardeio atômico, como o que ceifou a vida de milhares de japoneses na Segunda Guerra Mundial e continuou fazendo vítimas mesmo decorridos alguns anos.
Os sintomas eram de exposição à radiação, mas os médicos consideravam pouco provável algo do tipo no interior da pacata Goiânia (GO).
Por isso, eram incapazes de estabelecer um diagnóstico de um grupo específico de pacientes internados no Hospital de Doenças Tropicais, naquele setembro de 1987.
Este seria o maior acidente radiológico que o Brasil já vivenciou e não foi resultado de uma guerra.
Catadores de material reciclável encontraram uma peça de metal em um terreno abandonado, onde havia funcionado o Instituto Goiano de Radioterapia.
Eles a desmontaram, acreditando que teria algum valor financeiro, e venderam para um ferro-velho. Porém, tratava-se de uma fonte de césio-137, utilizada no tratamento de câncer. Ao violarem a blindagem que a protegia, a radiação se espalhou.
Somente após uma semana, a esposa do dono do ferro-velho, desconfiada de que o material estava intoxicando toda a família, o entregou à Vigilância Sanitária.
A pedido de um dos médicos, o local foi inspecionado com um detector de radiação pelo físico Walter Mendes, que confirmou a suspeita.
“O cintilador estava saturando a medida. Ou ele estava com defeito, ou estava na presença de uma fonte de material radioativo muito intensa”, lembra.
Mendes é, atualmente, o coordenador do Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste (CRCNCO), em Abadia de Goiás (GO), local sob o qual estão enterradas 6 mil toneladas de rejeito radioativo em contêineres de concreto.
Na ocasião do acidente, as áreas da cidade mais expostas à radiação foram isoladas e o Estádio Olímpico se tornou um centro de triagem da população, onde nos três meses seguintes foram monitoradas cerca de 112.800 pessoas.
Referência em medicina nuclear
Os pacientes mais graves ficaram sob os cuidados no Hospital Naval Marcílio Dias (HNMD), no Rio de Janeiro (RJ).
“Levar as pessoas que foram altamente contaminadas e irradiadas para o hospital da Marinha era a primeira e única opção que se tinha. Elas não tinham contaminação externa, mas interna. Já havia absorção da radiação pelo organismo. Dezesseis delas retornaram a Goiânia e estão vivas devido ao tratamento. Foi um trabalho de referência mundial”, afirma o físico.
Naquela época, o HNMD já contava com uma enfermaria de pacientes irradiados, resultado de convênio firmado em 1981 entre a Marinha do Brasil e Furnas Centrais Elétricas, instituição responsável pela construção da usina termonuclear Angra I, em Angra dos Reis (RJ).
Mas a capacitação dos profissionais de saúde teve início ainda na década de 1970, com treinamentos de poucos Oficiais e Praças nas áreas de radioproteção e de emergências envolvendo acidentes nucleares.
“O fato de ser um hospital militar, de grande porte, com estrutura hierarquizada, capaz de dispor e mobilizar de forma rápida grande número de profissionais da área de saúde de diversas especialidades para o atendimento multidisciplinar foi decisivo para que o HNMD, desde aquela época, exercesse o protagonismo no que tange ao atendimento, em nível terciário, de pacientes radioacidentados”, explica o Chefe do Serviço de Medicina Nuclear do hospital, Capitão de Fragata (Apoio à Saúde) Rodrigo Setubal Wunder.
A Chefe do Departamento de Enfermagem na ocasião, Capitão de Mar e Guerra (Apoio à Saúde) Sonia Fonseca Rocha lembra, como se fosse hoje, do dia em que recebeu os quatro primeiros radioacidentados no aeroporto do Rio de Janeiro (RJ).
“Tenho vivo na minha memória tudo o que vivi na ocasião”, afirma ela, que apenas quatro meses antes do incidente tinha concluído um curso de radioproteção em Angra I e acompanhou o tratamento dos 10 sobreviventes, mesmo após o retorno deles a Goiânia (GO). “Só posso dizer que, com absoluta certeza, faria tudo de novo”, completa.
“Durante toda a permanência dos pacientes no HNMD, do primeiro ao último dia, tivemos a presença indispensável dos físicos e técnicos de radioproteção a nos monitorar. Graças a eles e ao conhecimento adquirido no curso que eu tinha recebido em Angra, o qual pude repassar a todos os que foram compor a escala de serviço, não tivemos ninguém da equipe a se contaminar ou correr riscos”, conta a Oficial, que no início trabalhava com mais três Sargentos, técnicos em enfermagem da Medicina Nuclear, mas chegou a chefiar uma equipe de 10 enfermeiras e 60 técnicos de enfermagem.
Avanços desde então
O convênio para atendimento de radioacidentados das usinas da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto, em Angra dos Reis, permanece em vigor. Ele inclui exercícios anuais para verificação da resposta médico-hospitalar prestada pelo Hospital Naval Marcílio Dias .
“Este é um importante elemento de capacitação e treinamento das equipes de saúde envolvidas, não apenas no Serviço de Medicina Nuclear, mas em todo o hospital”, avalia o Capitão de Fragata (S) Setubal, que é farmacêutico e especialista em radiofarmácia.
Nesses mais de 30 anos, a medicina nuclear evoluiu e incorporou novas tecnologias, movimento acompanhado pelo hospital da Marinha.
Atualmente, o Serviço de Medicina Nuclear possui equipamentos de tomografia computadorizada de alta precisão, capazes de avaliar a atividade metabólica das células e a função de diversos órgãos e tecidos.
Eles permitem a detecção e o diagnóstico de doenças complexas, principalmente nas áreas de oncologia, cardiologia e neurologia.
A enfermaria que recebeu os casos mais graves do acidente de Goiânia é, hoje, uma Unidade de Tratamento Intensivo para Radioacidentados, com leitos de terapia intensiva, centro cirúrgico e laboratório, que operam dentro das normas da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN).
Segundo o Oficial, a Unidade funciona rotineiramente para internação de pacientes com câncer de tireoide submetidos ao tratamento com radioiodo.
O Brasil nunca mais testemunhou acidente semelhante ao ocorrido em Goiânia. O físico Walter Mendes explica que o País está mais preparado para lidar com situações semelhantes.
“O plano de emergência que a gente tinha era para ‘Angra I’, única central nuclear do País até então, e não para uma fonte violada no centro de uma cidade. Hoje, a gente tem um plano de emergência extremamente sofisticado”, garante o especialista.
Por Agência Marinha